Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A censura se instala dentro da redação

Em agosto de 1962, com a sucessão do presidente Emílio Médici na pauta, correu um boato de que O Estado de S.Paulo e o Jornal da Tarde publicariam um manifesto lançando a candidatura do general Ernesto Geisel. Foi o que bastou para o governo reforçar a vigilância sobre os dois veículos, mandando os censores de volta para a redação. De lá, eles só sairiam dois anos e meio depois, como conta o jornalista e escritor Ferdinando Casagrande em Jornal da Tarde – Uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira, obra vencedora do primeiro Prêmio Livro-Reportagem Amazon, a ser publicada também pela editora Record até o fim do ano.

Em uma parceria com o autor, o Observatório da Imprensa publica, durante quatro semanas, capítulos do livro com alguns dos momentos mais relevantes da história do JT, como o jornal era chamado. Esta é a terceira edição; a primeira pode ser conferida aqui e a segunda, aqui.

Jornal da Tarde – Uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira
Autor: Ferdinando Casagrande

Capítulo 25

Assumir a autoria de textos ou títulos controversos se tornaria prática comum para os Mesquitas durante os anos pesados da ditadura. Eles chegaram a baixar uma norma para as redações e sucursais: nenhum texto sobre assuntos sensíveis ao regime deveria ser assinado. A medida preservava a identidade do autor e permitia que um dos donos do jornal se apresentasse como responsável pelo material sempre que órgãos de segurança exigissem um nome.

Fernando Portela jamais se esqueceu do dia em que apareceu na sua frente uma reportagem sobre suspeitas de corrupção contra o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. Portela, então já editor da Geral, decidiu ousar e grafou no título: “Fleury acusado de corrupção. E ele se sai bem?”.

Era uma provocação, ele bem o sabia. Tanto que fez questão de enviar o título em letraset para a gráfica. Quando composto nesse formato, o texto chegava na oficina como se fosse uma ilustração e isso ajudava a driblar os censores. No dia seguinte, assim que entrou na redação, Portela foi chamado à sala de Murilo.

– Você ficou louco? Quer experimentar o pau-de-arara?

Dois dias depois, Portela foi intimado a prestar esclarecimentos na Polícia Federal. Apresentou-se sozinho a um delegado arrogante, terno preto brilhante, exemplar do Jornal da Tarde na mão, que lhe apontou o título.

– Quem escreveu isso aqui?
– Não sei.
– Como não sabe? O senhor é o editor e estava no jornal nesse dia.
– Sim, mas eu tenho cinco redatores trabalhando comigo, além do subeditor, e eu mesmo escrevo alguma coisa. São quinze páginas por dia, não dá para lembrar de tudo.
O delegado fez uma pausa calculada, um silêncio agressivo enquanto encarava Portela. Finalmente, decretou:
– Vou lhe dar um prazo para descobrir quem escreveu isso. Volte aqui na semana que vem, à mesma hora, e me conte.
Portela voltou para a redação preocupado e foi contar o que acontecera a Murilo.
– Eu disse que você ia se foder! Se fodeu! – zombou a rainha, dedinho indicador em riste, apontando para o editor.
– Vou precisar de um advogado da empresa, Murilo…
– Antes, vá contar essa cagada para o doutor Ruy. Mas vá sozinho.
Portela bateu à porta e entrou na sala. Ruy Mesquita levantou os olhos do texto que tinha à sua frente.
– O que aconteceu?
O editor explicou ao dono do jornal toda a história. Sem emitir qualquer juízo, Ruy Mesquita ditou as instruções:
– Faça o seguinte: vá até lá e diga que fui eu que escrevi o título.
– O senhor?
– Sim. Diga que nessa noite eu estava com insônia, aí peguei o carro e fui dar uma volta na redação. Você estava com muito trabalho, eu perguntei se podia ajudar, e você me disse: ‘Tem esse título do Fleury’. Eu sentei e escrevi.
– Mas o homem vai ficar puto, doutor Ruy.
– Vai ficar, sim. Mas se ele lhe prender, vai ter de me prender também. Estamos conversados?
Estavam. No dia marcado, Fernando Portela se apresentou à Polícia Federal. O delegado, com certa sadismo no olhar, perguntou:
– E então? Quem escreveu o título?
– Foi o doutor Ruy Mesquita – respondeu Portela, e repetiu toda a história. Ao final do relato, o delegado não fez questão de esconder a sua raiva.
– O senhor saia da minha frente! E saia já!

***

Mesmo nas vezes em que não conseguiu livrar seus repórteres da prisão, Ruy os apoiou da melhor maneira possível. O repórter Antônio Carlos Fon, da equipe de polícia, foi preso pelo Dops no final de 1969 por causa de apurações que vinha fazendo sobre o esquadrão da morte, do qual participava o delegado Fleury. O fato de o irmão de Fon pertencer a um grupo político clandestino complicou a situação do repórter. Ele passou dois meses sendo torturado nos porões da ditadura.

Quando foi solto, Fon achou que seria demitido. Era prática comum em outras redações. Surpreendeu-se, porém, ao ser informado de que sua vaga estava mantida. De volta à redação, ele foi à sala de Ruy Mesquita para se explicar.

– Não precisa me dizer nada – cortou o diretor. – A polícia não provou nada contra você, a mim você não deve explicações.

Os salários dos dois meses que Fon passara preso no Dops estavam depositados na conta.

***

A defesa da liberdade de imprensa não se restringia à proteção dos repórteres. Ficaram marcados na memória de vários jornalistas episódios em que Ruy explodiria com censores ou militares que tentavam impor algum ponto de vista. O episódio mais famoso, sem dúvida, ocorreria em 19 de setembro de 1972. Naquele dia, indignado com mais uma lista de assuntos proibidos, Ruy enviara um telegrama ao então ministro da Justiça do governo Médici, Alfredo Buzaid, desancando com o governo.

O texto ganhou repercussão internacional e lhe rendeu uma visita de outro ministro, Delfim Neto, acompanhado de dois oficiais de Justiça. Delfim queria saber se Ruy havia escrito, de fato, o trecho que mais irritara o governo:

“Senhor ministro, ao tomar conhecimento dessas ordens emanadas de V. Sa., o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, sr. Ministro, pelo Brasil, degradado à condição de republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perder a compostura.”

Ruy confirmou a Delfim que escrevera o texto e chegou a pensar que seria preso, mas nada aconteceu.

***

O telegrama ao ministro Buzaid foi enviado no auge da irritação. Fazia menos de um mês que os agentes da censura haviam voltado a trabalhar dentro do prédio do jornal, na noite de 24 de agosto de 1972. A sucessão de Emílio Médici estava na pauta e correu um boato de que O Estado e o JT publicariam um manifesto militar com o lançamento da candidatura do general Ernesto Geisel. O boato era falso, mas os censores não quiseram arriscar. Foram monitorar a impressão pessoalmente e passariam os próximos dois anos e meio lá. Só deixariam as dependências do Estado em janeiro de 1975, quando a censura finalmente seria suspensa por Geisel.

Assim que chegou à redação do JT, o censor daquela noite avisou, arrogante:

– Quero ler tudo o que vai ser publicado. Não me escondam nada!

Um erro fatal, cometido por alguém que claramente não sabia com que tipo de gente lidava. Imediatamente, sem que combinassem entre si, os editores tiraram das gavetas todas as matérias frias que esperavam uma chance de serem publicadas.

Laudas e mais laudas de textos caudalosos foram sendo empilhadas sobre a mesa do censor. Ele passou a noite e a manhã lendo como louco para dar conta de tanta coisa. Na tarde seguinte, quando pegou o exemplar impresso, nada daquilo estava no jornal. Daquele dia em diante, os censores decidiram trabalhar na oficina, onde só chegavam os textos a caminho da fotocomposição e que, portanto, estavam de fato sendo preparados para publicação.

Às vezes, os repórteres encontravam um dos censores no Mutamba, o restaurante que, depois de algum tempo, substituiu o Picardia no gosto da rapaziada do JT. Provas do jornal sobre a mesa, um copo de cerveja, jantava sempre sozinho um filé à cubana enquanto lia e canetava, com lápis vermelho, as matérias que pretendia ceifar das páginas.

Havia de tudo entre tiras designados para o trabalho de censura. Um deles, quando chegava, colocava o revólver sobre a mesa que ficava ao lado da do secretário gráfico. Outro, bebia demais e censurava de menos, porque adormecia nos sofás da sala de espera da diretoria. Havia um que era espião infiltrado na Escola Paulista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo. E um novato, certa vez, provocou gargalhadas na turma da oficina ao chegar perguntando:

– Onde estão as entrelinhas, por favor?
– Entrelinhas?! – espantou-se o secretário-gráfico d’O Estado na época, João Luiz de Andrade Guimarães.
– Sim, eu quero ver as entrelinhas. Meu chefe foi muito específico: “Leia as entrelinhas do jornal”.

***

Os cortes sugeridos nem sempre eliminavam reportagens completas das páginas. Muitas vezes, os censores mandavam tirar apenas uma foto, ou trechos de parágrafos. Em alguns casos, queriam cortar apenas uma frase, ou um nome. Ruy Mesquita, porém, dera ordem para que os textos não fossem mutilados. Se o censor mandasse tirar uma linha, tirava-se a matéria inteira. Isso gerava um problema prático: com o jornal fechado e a redação vazia, o que colocar no lugar?

Ruy não queria colocar nada. Preferia deixar o espaço em branco, mas os censores não aceitaram aquela tentativa explícita de denunciar a censura. A ordem era preencher os espaços com outros textos e fotos. No início, a oficina lançou mão de anúncios de outros produtos da casa, conhecidos no jargão das redações como calhaus. Aquilo não agradava a Ruy, por acreditar que os leitores não percebiam o que estava acontecendo. Ele estava certo.

Um calhau da Rádio Eldorado anunciando um programa sobre samba, publicado no lugar de uma foto ceifada da primeira página d’O Estado, foi elogiado em dezenas de cartas enviadas por leitores. Eles comemoravam o que acreditavam ser uma iniciativa para promover a música popular brasileira.

O Estado chegou a inventar uma campanha fictícia em defesa das flores da primavera na cidade, achando que aquilo despertaria a desconfiança do público. Os leitores, porém, adoraram a ideia e passaram a enviar cartas apoiando a campanha.

Nove meses depois da volta dos censores, Ruy teria uma das ideias mais originais da história da imprensa brasileira. Uma iniciativa que, além de ser a cara do diário que dirigia, se transformaria num marco da luta pela liberdade de expressão: o Jornal da Tarde combateria a censura com receitas culinárias.