Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A democracia perde um ruído

** ‘A máquina da democracia nunca deve funcionar de modo tão suave e silencioso que venha a abafar o zumbido da oposição. Deve haver pelo menos alguns dentes que arranhem contra as gigantescas engrenagens do governo’.

** ‘Os jornalistas que aderem aos poderosos e agem como explicadores e apologistas daqueles que violam a coisa pública devem ser vistos como cúmplices da pilhagem’.

Se alguém quiser criar os 10 mandamentos para a profissão de jornalista, terá que considerar essas duas frases de Jack Anderson. Ele as escreveu mais de 30 anos atrás, quando duas das maiores instituições da democracia americana estavam em conflito: a presidência da República e a imprensa. Reeleito com uma votação esmagadora, Richard Nixon transformou a Casa Branca em sede de quadrilha, autorizada a cometer ilegalidades em proveito do chefe.

Último baluarte na resistência à hipertrofia de poder, a imprensa fez jus às prerrogativas de que gozava então (e, apesar de tudo, ainda goza hoje) no país. Defendeu os direitos individuais, acuou os que violavam essas garantias constitucionais e levou o presidente ao primeiro impeachment da história dos Estados Unidos.

Vários jornalistas se destacaram nessa trincheira. Os que mais li foram I. F. Stone e Jack Anderson [ambos os links para páginas em inglês]. Stone morreu há 15 anos. Anderson, aos 83 anos, se foi no sábado (17/12), de mal de Parkinson. Lembro que li pela primeira vez a coluna ‘Carrossel de Washington’ (tradução nada fiel ao original, ‘Washington Merry-Go-Round’) em meados da década de 1960. No auge do seu prestígio, ela era distribuída para mais de mil jornais e lida por 42 milhões de pessoas. Vinha através de um serviço especial de malote, ainda não traduzida.

Uma vez encontrei várias delas no lixo, na redação de A Província do Pará. Recolhi, li e gostei. Passei a buscar o pacote na origem. Ninguém se interessava pelo material. Depois, no Rio e em São Paulo, tive acesso às colunas nos jornais americanos. E, em seguida, nas páginas da Tribuna da Imprensa e de alguns outros jornais brasileiros, que reproduziram os artigos de Anderson. Mas foi por pouco tempo e em pouca quantidade.

Lugar na história

Apenas um livro dele foi publicado no Brasil, em 1974. As gerações atuais, tanto aqui quanto nos Estados Unidos, que mal conhecem I. F. Stone, talvez nem tenham ouvido falar de Jack Anderson. Quando deixou de escrever, apenas 150 jornais publicavam a coluna. Os registros de sua morte foram medíocres. Não fizeram justiça ao grande jornalista que ele foi. Apesar de certas esquisitices e de um tom exageradamente moralista em algumas abordagens, a refletir sua condição anterior, de pastor mórmon, ele se tornou inspiração para os que, em épocas que já parecem antediluvianas, partilharam sua posição ética e profissional, a partir das duas premissas de suas frases maravilhosas.

A primeira reconhece que a crítica é o oxigênio da democracia e o pluralismo o seu pulmão. O crítico não é uma anomalia: é a fonte de vida de um sistema baseado na alternância de poder, na tolerância às minorias e no reconhecimento de que no contrário pode estar a raiz do novo, da mudança, da eterna juventude.

A segunda premissa é de que o espaço do jornalista jamais deve se confundir com o lugar em que se assentam os que dilapidam o patrimônio ou manipulam o interesse público. Como auditor em nome do povo, o jornalista que se torna conviva dos poderosos trai seus compromissos, nega a legitimidade do seu ofício, sua relevância social.

Isso não autoriza incivilidades e sectarismo. É obrigação do jornalista dialogar com todos, ter acesso a todas as instâncias, penetrar em todos os escaninhos da sociedade. Mas desde que bem esclarecidas as posições. A sua é a de perquirir pela verdade, investigar as situações mal explicadas, reconstituir as origens dos fatos.

Infelizmente, essas normas parecem estar fora de moda. Mas quanto mais se empenham os que querem vê-las esquecidas, para se favorecerem do olvido geral, mais importante é a tarefa de reavivá-las. Um compromisso que Jack Anderson levou até o fim e deixou-nos como legado de sua vida gloriosa. O descaso dos seus contemporâneos no momento de sua morte é um reconhecimento, na linguagem cifrada que os poderosos costumam usar, do seu significado.

Se os poderosos que tanto incomodou em vida agora lhe prestassem homenagens, seria porque sua luta foi um tanto em vão. Se ele perdeu, foi porque ganhou. Mesmo entre minorias, como tinha que ser, no mundo inteiro o seu nome foi lembrado como aquele que fez o bom zumbido e ficou na sua, ao lado da verdade. Foi em glória eterna, portanto, que Jack Anderson partiu. Para seu definitivo lugar na história, do qual não poderão tirá-lo os que lhe quiseram impor o silêncio.



Compadrio espúrio

Durante todo um ano o jornal mais influente do mundo, o New York Times, segurou uma grave informação: o presidente George W. Bush ordenara secretamente a escuta ilegal de aproximadamente 500 pessoas ou aparelhos telefônicos. O jornal não divulgou a notícia a pedido da própria Casa Branca. Só a revelou em 15 de dezembro, quando o segredo já ameaçava vazar e a cumplicidade do NYT se tornara insuportável.

Desde Richard Nixon essa situação insólita não se repetia. A diferença é que, além de Bush abarcar muito mais gente com sua atividade clandestina, o NYT, que estava do outro lado do balcão, agora se acomodou nas estruturas do poder. A conivência foi justificada pelo argumento de que a divulgação da informação poderia ter efeitos nocivos sobre as investigações que o governo americano fazia em relação a supostas ameaças terroristas. Mas nenhum fato relevante ocorreu desde então.

O silêncio deliberado do grande jornal da família Sulzberger favoreceu o caso mais grave de espionagem interna nos Estados Unidos contra cidadãos americanos, envolvendo a agência mais secreta do país, a NSA, proibida por lei de agir dessa maneira. Os dirigentes do New York Times não deram a mínima para advertências dos grandes jornalistas do país, dentre eles Jack Anderson, sobre o desastre em que se envolvem quando mantêm relações promíscuas com o governo.

Um grave sinal dos tempos.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)