Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘A dor é a principal causa que me faz trabalhar e criar’

Günter Grass, testemunha incômoda do século XX, autor de O Tambormorreu em um hospital em Lübeck, onde morava. Nascido em Danzig, que hoje pertence à Polônia, há 87 anos, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1999 pelo conjunto de uma obra na qual ofereceu sua incômoda memória de um século de guerras numa das quais, a Segunda Guerra Mundial, participou como soldado das SA. Esse episódio, desencadeado quando publicou suas memórias (Descascando a Cebola, 2007), obscureceu sua vida de então; apesar de ter mencionado em obras anteriores haver pertencido às forças armadas de Hitler quando era um jovem de dezesseis anos, foi esta última revelação que foi brandida na Alemanha e no mundo. Ele despertou desse estado de angústia e continuou escrevendo e pintando. Agora, estava prestes a publicar um livro de poemas, desenhos e narrativas.

O vimos recentemente em sua casa em Lübeck, com sua esposa, Ute, em 21 de março, uma tarde em que se mostrou alegre e animado. Não queria falar de política, mas em seguida começou a falar de política sob os quadros da série negra de Goya que ordenavam sua cabeça quando se punha a cumprir sua velha vocação de artista de todos os gêneros que se fazem na solidão. Grass já precisava da ajuda de um respirador, mas fumava cachimbo, como em seus autorretratos; ele se mostrava jovial e alegre, preocupado com o estado do mundo, com o retorno da maldade a situações que lembravam o pior da Idade Média, e convencido de que somente a união da Europa, o conhecimento comprometido da realidade de outros levantaria o ânimo de uma humanidade cujo século XX, que ele retratou a melancolia em Meu Século (1999), tinha sido alimento cruel ou do gozo de sua alma, que também às vezes era a de uma criança que viveu pendente de sua mãe e que, no final da vida, contava esse descolamento com ternura e sentimento de solidão. Na conversa que tivemos há menos de um mês e publicada aqui na íntegra, recebemos a ajuda de Grita Löbsack, intérprete e amiga dele, esposa de Miguel Sáenz, acadêmico e tradutor da maioria de suas obras.

Quando terminou a conversa, Grass nos devolveu com ele a sua casa solitária, onde sua esposa, Ute, que nos últimos meses esteve com a saúde mais frágil do que ele, tinha preparado alguns doces cuja receita fora deixada pelo primeiro marido de Ute Grass, que tinha acabado de visitá-los. Grass ficou muito entusiasmado que tivéssemos levado presunto serrano, cujos pedaços grandes lhe recordavam a forma dos bandolins italianos (de fato, quando estavam inteiros, ele fingiu tocá-los como se fossem instrumentos musicais) e riu como se fosse viver para sempre. Fez planos hipotéticos, como voltar para o Círculo de Bellas Artes de Madri para expor suas pinturas, mas uma pneumonia que o levou ao hospital acabou com uma vida exuberante de fatos e livros, e também cheia da incerteza geral que fez tão triste o século XX. Antes dessa conversa que em seguida se transcreve, perto das pinturas da série negra de Goya, o escritor mais político do século XX alemão nos disse: “Mas vamos continuar a falar sobre a política?” Ele mesmo havia iniciado uma conversa sobre a atualidade política quando ainda estávamos na salinha de sua casa, mas prestamos atenção: “Não, se nós tínhamos vindo para falar de poesia”. E não passaram dois minutos até que Grass voltasse, é claro, ao território em que desenvolveu a sua vida: a mistura esmagadora de política e poesia.

Como ser humano, o que lhe provoca escrever poesia diariamente?

Günter Grass – Meu primeiro livro foi lançado nos anos cinquenta e foi um livro de poesia com desenhos. Só mais tarde eu comecei a escrever o romance O Tambor. Naquela época eu estava em Berlim estudando escultura. Escrevia um romance e quando terminava tinha de mudar o meio de expressão. Naquela época era a poesia, porque percebi que ao identificar-me com muitas figuras de romances acabava me afastando de mim mesmo. E queria voltar a mim e medir-me também comigo mesmo em certo sentido.

E desenhava.

G.G. – Quando desenhava durante muito tempo tinha que voltar para as palavras, para a poesia. Tentava voltar a me reencontrar e encontrar também o lugar onde estava porque toda a minha atividade anterior me distanciava de mim mesmo.

O que o senhor encontra quando volta a si mesmo?

G.G. – Nos anos 50 e 60 tive de usar óculos e escrevi um poema no qual aludia ao assunto… Nesse poema eu digo que tudo é mais preciso, mas é oblíquo, que as impurezas se veem com mais precisão. E ao longo dos anos, eu também percebo o processo de envelhecimento, que há alguma fadiga dos materiais do corpo e você tem de ir a uma oficina de conserto. Também adquiro a consciência de que tudo é finito.

Sempre teve essa impressão, mesmo em sua juventude?

G.G. – Para mim, ficou claríssimo muito cedo porque filosoficamente não estava sob a influência de Heidegger, mas de Camus. Ou seja, vivemos agora e temos a possibilidade de fazer algo agora com nossa vida. É o Mito de Sísifo, que conheci depois da guerra. Ao longo dos anos, percebi que temos a possibilidade da autodestruição, algo que antes não existia: dizia-se que era a Natureza que produzia fomes, secas, algo cuja responsabilidade estava noutro lugar. Pela primeira vez nós somos responsáveis, temos a oportunidade e capacidade de nos autodestruir e nada é feito para livrar o mundo desse perigo. Ao lado da miséria social que existe em todos os lugares, agora temos oproblema da mudança climática, cujas consequências nem sequer temos em mente. Há uma reunião atrás da outra e o problema continua o mesmo: nada é feito.

E os problemas aumentam.

G.G. – Devemos acrescentar a isso o problema da superpopulação. Isso tudo me faz perceber que as coisas são finitas, não temos um tempo indefinido. Se levarmos em conta o tempo de existência do nosso planeta, só nos resta reconhecer que somos convidados que passam um tempo curto e muito determinado neste mundo e a única coisa que deixamos para trás é o lixo atômico. Se algum dia alguém quiser saber o que nós fizemos, o que nos caracterizará é o lixo atômico… Nos anos 70 e 80 eu escrevi dois romances épicos, O Linguado e A Ratazana; a capacidade do homem de se autodestruir de que falo está refletida nesses romances.

Não há um só livro de prosa entre os seus que não vá ao centro de sua própria vida, de O Tambor até Descascando a Cebola ou Passo de Caranguejo… A ficção lhe serve para contar sua realidade por dentro…

G.G. – Sim, e com isso quero dizer que este novo livro que sairá no outono é de textos curtos nos quais quero mostrar a relação intensa entre a prosa e a lírica. Os germanistas normalmente separam em gêneros. Eu quero vê-los juntos porque acredito que eles estão relacionados: os limites entre prosa e poesia para mim não estão definidos, são diluídos.

Esta combinação lhe permite dizer melhor o que acontece com o senhor?

G.G. – Da minha mãe eu herdei dois talentos: nunca foi um problema continuar uma coisa e abandonar outra. Eu entendi que tenho dois talentos e que com muito trabalho eu tenho que desenvolvê-los e tentar expressar a mim mesmo partindo dos dois. Escolher entre uma coisa ou outra não foi uma opção, mas um enriquecimento. Por exemplo, se escrevia durante muito tempo tinha a sensação de que a escultura me fazia muito bem porque sentia que expressava algo de todos os lados ao mesmo tempo, algo que estava dentro do espaço. Muitos poemas começam com um desenho; quando eu tenho a ideia de uma metáfora, eu a coloco no papel e em seguida tento passá-la a um desenho para ver se ela se sustenta ou não. Em Achados para não Leitores, pintava algumas aquarelas e quando ainda não estavam secas já começava a escrever poesias de quatro ou cinco linhas. Este é um bom exemplo de como as disciplinas (pintura, escrita) se misturam e se enriquecem mutuamente.

Humanamente, o que o trabalho significa para o senhor?

G.G. – Você leu meus livros e sabe, como conto em Descascando a Cebola, que com 16 anos eu sobrevivi por mero acaso; em três ou quatro semanas durante a guerra eu tive cinco ou seis chances de sucumbir, como muitíssimos da minha idade. Estou ciente disso até hoje. O fato de que trabalhe o máximo possível me ajuda a provar a mim mesmo que eu sobrevivi, que existo e que continuo vivendo, que estou vivo.

Antes o senhor mencionou Camus. A obra de Camus é uma explicação, uma expiação da dor, uma busca da sobrevivência por meio da literatura. O senhor aprecia Camus por essa mesma atitude?

G.G. – O ensaio sobre o mito de Sísifo descreve o trabalho, o horrível que é subir a rocha sabendo que é inútil porque a pedra voltará a cair; no entanto, Sísifo não tem outra alternativa a não ser levar a pedra para cima porque do contrário ficaria sem função. Camus termina esse ensaio dizendo que você pode considerar que Sísifo era um homem feliz… Isso foi muito importante para mim, uma nova interpretação do mito realmente muito excitante: toda a causa no fundo é a dor. Cada pessoa tem sua própria situação e eu percebi que não só poderia me expressar artisticamente como tinha que tratar de determinados temas: a minha juventude, a capitulação absoluta da Alemanha com a destruição total de todas as casas mas também com o desmoronamento das pessoas…

Uma história de dor…

G.G. – Durante toda a minha vida e até hoje, isso continua igual. E o incrível é que a Alemanha é uma história inacabada, porque o Holocausto e o genocídio, esses crimes horríveis, constituem uma história que não termina nunca. Agora vemos isso na Grécia: somos confrontados novamente ao problema dos horrores causados por soldados alemães durante a ocupação… Essa história ainda nos acompanha… Então eu volto novamente para o tema da dor de Camus: a dor é a principal causa que me faz trabalhar e criar.

Camus tem esta frase: “O sol que reinou sobre a minha infância me privou de todo ressentimento…”. Sua infância também foi capital para desenvolver sua posterior obra literária mais tarde?

G.G. – Em Descascando a Cebola há um obituário sobre a minha mãe. Ela morreu de câncer aos 75 anos. Voltei a ver meus pais e minha irmã dois anos depois do fim da guerra. Minha mãe tinha sido expulsa de Danzig; quando a vi era uma mulher destroçada e velha… Quando era menino eu contava a ela muitas histórias que saíam da minha imaginação, e a imaginação das crianças é muito fértil. Ela dizia: “Mentiras de crianças”. Mas no fundo ela gostava de mentiras. Eu sempre dizia a ela que quando fosse maior e tivesse dinheiro iria levá-la a países maravilhosos e todas essas coisas, mas como ela morreu tão cedo eu nunca pude demonstrar que queria realmente fazer isso. Nunca pude fazer nada por ela… Ela sofreu quando eu disse que queria ser um artista; meu pai era totalmente contra e ela sempre me apoiou, mas sofreu por isso. Eu ainda sofro porque eu não pude demonstrar a ela nada do que prometi. Eu tenho um forte complexo materno: eu nunca fui a um psiquiatra e é a fonte de toda a minha criatividade.

O senhor disse antes que em Descascando a Cebola narra a história de um jovem (o senhor) que poderia ter morrido ou desaparecido. Isso não aconteceu, o senhor está aqui. De alguma forma, aquela guerra não feriu para sempre o senhor e sua geração?

G.G. – Certamente sim, fomos marcados pela Segunda Guerra Mundial. E o mais terrível são os efeitos de longo prazo que prosseguem. Portanto, a minha geração é mais atenta aos problemas do presente, enquanto ao redor parece agora que estamos entrando em uma Terceira Guerra Mundial sem que possamos dizer quando começou. A Segunda Guerra Mundial começou com a entrada da Alemanha na Polônia, mas no fundo já tinha começado antes, com a Guerra Civil Espanhola. Para a Alemanha, a Itália, a URSS e demais países, a Guerra Civil Espanhola foi uma oportunidade para testar as armas em um caso concreto. Quando terminou, em 1939, começou a Segunda Guerra Mundial. Em 1936, o Japão começou a entrar na Manchúria e dali para a China, com aquela matança horrível; ou seja, que também houve outro foco de guerra na Ásia… Agora temos por um lado a Ucrânia, cuja situação não melhora nada; em Israel e na Palestina está cada vez pior; o desastre que os americanos nos deixaram no Iraque, as atrocidades do Exército Islâmico e o problema da Síria, onde as pessoas continuam se matando, mas quase desapareceu do noticiário… Há guerra em todos os lugares; corremos o risco de voltar a cometer os mesmos erros de antes; assim, sem perceber, podemos nos meter em uma guerra mundial como se andássemos sonâmbulos…

O senhor escreveu Meu Século, o século XX e as maldades do mesmo. Este século XXI prolongou a maldade e o lugar-comum é o fanatismo. É essa a maldade humana do século XXI?

G.G. – Eu coloco isso em dúvida. Nunca digo que isso é bom e aquilo é ruim, seria simplificar demais as coisas. Bush era um problema… Bush falava da maldade e isso não ajudou a encontrar uma solução: levou ao maniqueísmo, o branco e preto… O que se deve fazer é lembrar o início dessa história. Por exemplo, o que aconteceu depois da Primeira Guerra Mundial? Caiu o Império Otomano, os Balcãs foram divididos e o petróleo se tornou um elemento muito importante. O Iraque não existia antes, foi uma invenção das potências coloniais vitoriosas dessa guerra mundial… A Palestina era um protetorado britânico, assim como a Síria era um protetorado francês… E o Holocausto gerou o problema da Palestina. No fundo, tudo foi anexação de terras e até hoje a causa do problema foi a atitude dos vencedores da Primeira Guerra Mundial.

Temos esperança que o homem seja melhor no século XXI? O senhor volta ao passado e, ao prever Terceira Guerra Mundial, vê o futuro com pessimismo?

G.G. – Não é pessimismo. Baseio-me na experiência e nos erros que cometemos, que podem ser comprovados historicamente, então eu tenho dúvidas de que o homem vá melhorar. Outra coisa é se o homem é capaz de aprender com os erros do passado. Por exemplo, olhe para o conflito com a Rússia. Desde o colapso da União Soviética, que foi um desastre, chegaram Yeltsin e Putin. E então vieram Putin e Putin! O que Putin está tentando é voltar a reconstruir esse país que é a Rússia… Putin vê em 1988 e 1990, quando tudo desmorona, que, apesar de todas as promessas ocidentais, a OTAN se aproxima cada vez mais. E há traumas russos, desde Napoleão, desde a Segunda Guerra Mundial, com 27 milhões de mortos quando chegaram os alemães, e agora eles voltam a ficar com medo de serem cercados pelo inimigo. Eu não estou dizendo que se justifique o que eles fizeram na Criméia, é injustificável, mas isso deve ser entendido e é o que devemos fazer, entender a Rússia.

E nós não a entendemos.

G.G. – Nós perdemos a capacidade de compreender os erros que cometemos depois de 1989. Após o colapso do Pacto de Varsóvia, a URSS foi dissolvida, mas a OTAN continua aí, tranquila. Não houve tentativas sérias para a criação de uma nova aliança de segurança incluindo a Rússia e isso é uma falha enorme. Promete-se à Ucrânia que será parte da União Europeia e mais tarde da OTAN e é lógico que um país como a Rússia reage nervosamente. Todas estas reações de Putin têm suas causas e, embora na Europa estejamos habituados a colaborar nos aspectos econômicos e financeiros, não conseguimos criar uma política externa comum; ainda dependemos muito dos desejos dos americanos e os Estados Unidos estão muito longe de nós e do que temos de fazer. Se os republicanos chegarem ao poderteremos um novo rearmamento e de repente haverá uma potência militar na diante da Rússia.

O senhor criou muitas metáforas. A que calou mais fundo é a de Oscar Matzenrath. Dá a impressão de que esse personagem que não queria crescer nem se misturar com o mundo adulto, hoje tampouco desejaria crescer…

G.G. – A diferença entre o século XX e XXI é que o XX foi caracterizado pela ideologia, e não apenas pelo fascismo italiano, o nacional-socialismo alemão ou o comunismo, mas também pelo american way of life e pelo capitalismo dominante. Tudo o que resta de todas essas ideologias é o capitalismo e o capitalismo é capaz de mudar. Mas o capitalismo está se autodestruindo; todas essas quantidades irracionais de dinheiro gasto pelo mundo já não têm nada a ver com a economia real. Essa irracionalidade não foi tão acentuada no século XX… Oscar seria uma pessoa diferente hoje, teria que lutar contra resistências diferentes e também iria se mover em ambientes completamente diferentes. No século XX, ele provinha de um ambiente proletário e pequeno-burguês e tinha que reagir. Agora seria um computer freak, um hacker ou algo assim, e teria de superar outras resistências.

Você foi Oscar Matzenrath?

G.G. – Eu não consegui parar meu crescimento!

Você teria gostado disso?

G.G. – Não, no fundo, não… Não sou idêntico ao Oscar, o que acontece é que a figura de Matzenrath está enraizada no picaresco, representa uma espécie de espelho que tem uma lupa capaz de provocar um incêndio, capaz por outro lado de expressar a infantilidade do século XX, do qual eu não queria participar ou me defender.

O senhor trabalha sob figuras de Goya. O que Goya lhe proporciona?

G.G. – Trabalho, de fato, sob uma série de gravuras de Goya. Cada vez que eu comemoro um aniversário importante, daqueles que contêm 0 ou 5, minha mulher me dá alguma que ainda se vende no mercado… Para mim é como a medida do artista, o critério de verdade. É de uma imaginação incrível, como ilustra a demência deste mundo! Eu tenho várias gravuras dos Caprichos em que Goya nos mostra que é contra a Inquisição, com a demência da Igreja Católica de um lado e com a vida como ela é do outro… Goya é o grande exemplo para mim, é o que me dá a medida de se algo é bom ou ruim.

***

Juan Cruz, do El País