Com a exceção de meia coluna de repercussão – recurso que deveria ter sido banido do jornalismo por representar o lugar-comum – a edição de terça-feira (13/06) da Folha de S.Paulo ofereceu aos seus leitores um excelente material sobre a morte do físico brasileiro José Leite Lopes, ocorrida na véspera. O Estado de S.Paulo deu a notícia espremida num canto de página (A 19), pouco mais que um registro.
O Estadão, que recentemente fez alarde com material relacionado à Primeira Guerra Mundial (que terminou em 1918, ano do nascimento de Leite Lopes), se mantém apegado a uma mentalidade do século 19, quando a ciência ainda não havia sensibilizado a população, majoritariamente rural, de suas perspectivas de profundas transformações sociais.
Com alguma freqüência o Estadão trai essa mentalidade paroquial, de fundo beletrista, ao menos enquanto orientação editorial. A morte recente do jurista Miguel Reale, por exemplo, ocupou várias páginas editoriais.
Reale foi de fato um homem de cultura, com peso na vida pública do país e interesse em filosofia da ciência, entre outros. Mas Reale era das humanidades e, além disso, paulista notável. José Leite Lopes foi um físico de altas energias, pernambucano e contestador do sistema de poder histórico no Brasil, perfil não muito palatável aos temperos ideológicos do Estadão. Daí uma certa rejeição, como já havia ocorrido com a morte de Celso Furtado.
Por essas resistências e desencontros no tempo, os leitores do jornal perderam a oportunidade de conhecer um pouco da vida, princípios e sonhos deste homem notável, integrante de uma geração de grandes cientistas brasileiros, como Mário Schenberg, também pernambucano e, da mesma forma, com seus direitos elementares de cidadania (entre eles o de ensinar seus alunos) cassados pelo governo dos generais.
Figura desconhecida
Quem conviveu com José Leite Lopes desfrutou, além de sua sagacidade intelectual – de que a física e a ciência como um todo foram inseparáveis de outras áreas da cultura – também de seu humor refinado. E aqui o encanto renovado pelas mulheres foi decantado como num poema homérico.
Leite Lopes, como Mário Schenberg e outros homens notáveis da ciência brasileira, representam um contexto, uma expressão histórica da ciência no Brasil. Ele iniciou-se na física por orientação de Luiz Freire, na Escola Química de Recife. Freire, que permanece quase desconhecido fora dos muros das academias e dos campi das universidades, foi um dos primeiros críticos do positivismo no Brasil. Apontou incoerências na articulação teórica de Augusto Comte (1798-1857) e denunciou a camisa-de-força representada por essa concepção filosófica em termos de desenvolvimento científico mais promissor.
Em 1945, trabalhando com Wolfgang Pauli em Princeton – universidade que também abrigava Albert Einstein –, Leite Lopes acompanhou como observador privilegiado o desenvolvimento da energia nuclear, especialmente com o impacto das bombas atômicas atiradas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Leite Lopes, que abriu trilhas retomadas por físicos como Sheldon Lee Glashow, Stephen Weinberg e Abdus Salam, participou de batalhas fundamentais para assegurar a consolidação e desenvolvimento da ciência no Brasil. Em muitos casos contou com a compreensão pessoal de outras inteligências, caso do ministro João Alberto Lins de Barros, outra figura histórica praticamente desconhecida dos leitores de jornais.
João Alberto, como era conhecido, participou das revoluções de 1924 e de 1930. Ofereceu apoio irrestrito à ‘Marcha para o Oeste’, como ficou conhecida a conquista do Brasil Central, especialmente pela expedição Roncador-Xingu, comandada pelos irmãos Villas-Bôas. Orlando Villas-Bôas, o último dos irmãos, referiu-se até o final de sua vida com respeito e gratidão à sensibilidade de João Alberto.
Cidadania e patriotismo
Na relação com Leite Lopes, João Alberto deu apoio para a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), sobretudo na vertente relacionada à energia nuclear. Quanto a Leite Lopes, acompanhou e interagiu também com uma outra personalidade de destaque na história da ciência no Brasil, o almirante Álvaro Alberto, fundador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), primeira agência de financiamento à investigação científica no Brasil.
Álvaro Alberto sensibilizou o presidente Getúlio Vargas a desenvolver no Brasil um programa voltado para a energia nuclear. A idéia básica era interagir de forma mais inteligente com os Estados Unidos que, num primeiro momento, foram os únicos detentores da bomba atômica e de segredos nucleares estratégicos. Por essa época o Brasil fornecia areia monazítica aos Estados Unidos, material que contém tório, elemento fundamental no domínio dessa fonte de energia.
Os Estados Unidos pagavam o Brasil em dólares ou trigo e Álvaro Alberto propôs uma mudança: o Brasil deveria receber em conhecimentos estratégicos e equipamentos que permitissem o desenvolvimento da pesquisa nuclear por aqui.
Com a resistência dos Estados Unidos amparada em lei (Lei Mac-Mahon) os equipamentos foram comprados na França e Alemanha, mas as informações que ele desejava nunca chegaram. Com o suicídio de Vargas e a instalação do governo Café Filho, Álvaro Alberto acabou demitido do CNPq e suas idéias foram abandonadas.
Homens como José Leite Lopes, pela cultura de que dispunham, trabalho realizado e mesmo projetos fracassados pela incompreensão de instituições como universidades e o próprio Estado, além do ressentimento invejoso de seus próprios pares, são a expressão da própria história. Daí a necessidade de serem conhecidos da sociedade nacional como referência de cidadania e patriotismo – não o patriotismo ufanista e bajulador, mas a identificação e a consciência crítica dos valores e das necessidades nacionais para garantia de bem-estar social.
Mentalidade predadora
José Leite Lopes, em sua produção intelectual, deixou numerosos livros, entre eles Ciência e libertação, coletânea de artigos publicado originalmente em 1969, com reedições. Nesta obra suas preocupações com a ciência no Brasil aparecem claramente em capítulos como ‘Ciência e subdesenvolvimento’, ‘Responsabilidade dos homens de ciência’, ‘Ciência e humanidade’ e ‘O que é universidade?’.
Já no prefácio à segunda edição, pela editora Paz e Terra (1978), previne contra o positivismo diluído combatido por seu antigo mestre, Luiz Freire, que leva a situações como ‘a ciência nos ter sido ensinada como um corpo único de conhecimento, de metodologia e aplicações universais, ideológica e politicamente neutro. A Europa Ocidental e os Estados Unidos nos foram apresentados como os herdeiros da Grécia, paradigma da cultura’.
Aqui também aparecem suas impressões relacionadas ao retorno das várias permanências no exterior: ‘Pouco a pouco nos defrontamos como obstáculos opostos à realização dos nossos trabalhos como o insuficiente apoio financeiro à pesquisa científica, ausência de uma política nacional de estímulo à ciência e tecnologia e universidades desprovidas de estruturas adequadas’.
Algumas dessas situações acabaram superadas, ao menos parcialmente, por encaminhamentos do próprio Leite Lopes, quem propôs, em meados dos anos 1980 a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia. Outras ainda resistem, ou acabaram agravadas pela mentalidade predadora que se apossou da estrutura de Estado.