A escolha de uma profissão não obedece a lógica alguma. Nem todos a escolhem pelos mesmo motivos. Muitas são escolhidas pelo status que possam dar, numa visão de ganhos materiais; algumas pela estabilidade e garantia de poder aposentar-se dignamente; outras exclusivamente pelo gosto de exercê-la. Nesta última categoria me permito, sem bairrismo, colocar os jornalistas.
Passados mais de 50 anos, lembro perfeitamente o dia que me encantei pelo trabalho de escrever em jornais. Corria o ano de 1950, minha mãe era repórter num jornal chamado A Tribuna, na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Um dia ela me levou até a redação, fiquei impressionado com aquele maravilhoso caos, o barulho das máquinas de escrever, gente que gritava, ria e dizia palavrões, cinzeiros trasbordantes de baganas e cinzas, garrafa térmica de café num canto imundo cheio de copos sujos. O chefe da circulação me levou até a oficina – que ficava no subúrbio – para ver o jornal rodar. Fomos num caminhão Chevrolet Tigre. Minha impressão ao chegar foi de verdadeiro deslumbramento: o cheiro do antimônio derretido dos linotipos, de graxa, de tinta, e finalmente aquela enorme máquina a ‘cuspir’ jornais já prontos.
Quando voltamos para a redação com o caminhão cheio de jornais, minha mãe estava esperando na porta, pegou logo um exemplar e começou a ler. Perguntei-lhe o que lia. ‘Aquilo que escrevi’, foi sua simples resposta. Naquele momento, não consegui entender por que uma pessoa queria ler o que já sabia. Foram necessários mais 10 anos para o entendimento, quando trabalhando como foca vi pela primeira vez impresso algo que eu havia escrito.
Assistência humanitária
Não é de minha vida que quero falar, mas do jornalista Enzo Baldoni. Nasceu em Città di Castello, na região da Úmbria. Primeiro partiu para Milão a fim de estudar ‘ciência das preparações alimentares’, logo desistiu e lançou-se no mundo. Foi pedreiro na Bélgica, estivador, fotografo policial, autor de textos eróticos, professor de ginástica, de música, voluntário da Cruz Vermelha em Milão.
Sua entrada no jornalismo foi também muito particular. Estava um dia em Londres, tinha deixado um emprego para ter liberdade, quando encontrou no lixo um jornal italiano que nem tinha sido tocado. Neste viu num anúncio que uma agência de propaganda precisava de um diretor de criação. Ganhou o cargo, mas nele descobriu que, na realidade, queria ser jornalista. Não procurou emprego num dos grandes jornais, pois isso lhe tiraria a liberdade de viajar e escrever o que bem entendesse. Assim, tornou-se free lancer.
Fez artigos sobre a pedofilia; o uso terapêutico da maconha; esteve procurando matérias em lugares perigosos, como em Chiapas, no México, ou com os revoltosos na Colômbia, na Birmânia, em Timor Leste, onde se tornou amigo Xanana Gusmão; esteve nos leprosários do Havaí, nos esgotos habitados de Bucareste. Sua vontade de ver as coisas de perto o levou à Bagdá, onde chegou em 7 de agosto último. Além de estar sempre atualizando seu blog (www.bloghdad.splinder.com), também é voluntário da Cruz Vermelha.
No dia 14 de agosto, ajudava a preparar um comboio para levar medicamentos à cidade de Najaf quando se feriu levemente. Ele mesmo se encarrega de fazer ironia: ‘Num lugar onde todos atiram em todos, eu vou me ferir descarregando um caminhão’. Voltou a Bagdá no dia 19, tornou a ir com outro comboio de assistência humanitária para Najaf e Kufa, resolveu ficar por lá, mandou um artigo via internet no dia 20 e depois desapareceu.
Uma certeza
A localização dos corpos de seu motorista e do intérprete anunciava que havia acontecido algo errado. O serviço secreto italiano no Iraque diz não saber nada. No dia 22, a TV al-Jazira anunciou a libertação de Micah Green, jornalista americano que havia sido seqüestrado no dia 13, fato que aumentou as esperanças sobre Enzo.
No dia 24, a al-Jazira colocou no ar um vídeo onde aparece Baldoni, mantido como refém do Exército Islâmico no Iraque, o mais radical grupo que atua no país. ‘Me chamo Enzo Baldoni, tenho 56 anos, sou jornalista, sou um escritor social….’ – começa ele. ‘Sou também um voluntário da Cruz Vermelha, vim aqui para escrever sobre os combatentes iraquianos.’ Tudo parece mais ou menos bem, mas logo depois chega um comunicado estarrecedor. Não interessa que Enzo seja jornalista, não interessa que ele seja um homem de paz: o Exército Islâmico anuncia que se em 48 horas as tropas italianas não deixarem o pais, ele será morto.
Precisos como um relógio suíço, os terroristas executaram Enzo Baldoni na quinta-feira, 26/8.
O terrorismo é uma tentativa de negar à democracia o direito de escolha. Sou pessoalmente contra o fato de a Itália ter enviado tropas para o Iraque, mas é a política de um governo que foi democraticamente eleito – que não pode ceder à chantagem de um grupo terrorista que quer submeter suas vontades pela violência, que não pode permitir interferências externas mesmo diante de uma tragédia previamente anunciada. Na plano ideológico, para o Exército Islâmico do Iraque, o homem que mantinham como refém, com seus ideais e sua história, não tinha a mínima importância. Contavam tão-somente transformá-lo num instrumento político para poder chantagear um governo ocidental e chamar a atenção da opinião pública sobre eles.
Passados poucos dias do brutal assassinato, o mesmo grupo rapta dois jornalistas franceses, mas aí surgiu uma dificuldade: o que pedir como resgate, uma vez que a França não tem soldados no Iraque e foi contra a invasão americana? Nada mais simples: o governo francês resolveu, por lei, laicizar as escolas, eliminando desde os crucifixos nas salas de aulas ao uso dos véus islâmicos. Portanto, os prisioneiros seriam somente soltos caso essa última proibição fosse revogada.
Passaram-se as 48 horas de prazo, ainda não se sabe qual o destino desses dois jornalistas. Mas disso tudo fica uma só certeza: a mãe dos imbecis está sempre grávida.
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Jornalista