O savoir faire recomenda que não se fale mal dos recém-falecidos, mas tecer a estes elogios tão-somente pelo fato de terem desaparecido é, no mínimo, sinal de pieguice e hipocrisia. Refiro-me a Oriana Fallaci, que morreu em Florença na sexta-feira (15/9) e ao artigo que sobre ela escrevi neste Observatório (“Com muita raiva e orgulho duvidoso”), em 21/11/2005.
Agora os fatos mudaram e torno a escrever sobre ela. Fallaci foi uma jovem muito graciosa, pequena, de peso certo, pela clara, olhos azuis e luminosos, mas seus lábios sempre estavam eriçados, demonstrando desde então seu incômodo com relação aos outros.
O pai era antifascista e ela, por ter participado da resistência até onde lhe permitia a tenra idade, sempre quis se classificar como heroína de guerra. Em 1953, levada pela grande jornalista Camilla Cederna (1911-1997), uma das melhores na história da imprensa italiana, começa no hebdomadário Europeo. E logo as duas entraram em conflito – Fallaci não tolerava possíveis rivais ou concorrentes. Assim os leitores italianos dividiram-se em duas correntes: os “cedernianos” que amavam a ironia culta e mundana de Camilla e depois deram-lhe sustentação na empreitada política do Espresso; e os “fallacianos”, que soluçavam adoradores pelos escritos viscerais de Oriana, pelo “esbofeteamento” moral a que submetia seus entrevistados, de Federico Fellini a Henry Kissinger, de Gina Lollobrigida ao Xá da Pérsia, de Marcello Mastroianni a Golda Meir.
Supremo motivo
Oriana sempre teve a pretensão de ser uma protagonista internacional e de que existia um mundo inteiro à sua disposição: revoltas estudantis, guerras civis, o Vietnam e o Líbano, os ditadores e os presidentes.
Não era nem egocêntrica: excedia esse limite, dava a entender que o mundo era ela, o resto todo existia para servi-la. Não tinha pejo em julgar-se melhor correspondente de guerra que Ernest Hemingway. Assim também foi com a doença que a matou aos 77 anos, um tumor maligno nos pulmões. Para ela, isto não resultara do fato de ela uma fumante inveterada. A doença fora contraída, segundo ela, por aspirar muita fumaça dos poços de petróleo incendiados no Kuwait, durante a primeira Guerra do Golfo (1991) contra Saddam Hussein, na qual trabalhou como correspondente.
Sua vida sentimental também era vítima de sua personalidade. Ao que consta, apaixonou-se somente por Alekos Panagulis, herói da resistência grega contra a ditadura, assassinado em 1976. Oriana tornou-se, digamos, sua “viúva” escrevendo sobre ele o livro Um homem. Mas conta-se como verdade que ela já o deixara, primeiro por estar se tornando muito famoso e, depois, por algo bem prosaico: ele, certa feita, tivera a ousadia de pedir-lhe que lhe lavasse um par de meias.
Esta foi ela
Portanto, nada mais oportuno que a reunião de algo que Oriana Fallaci disse de si mesmo, nas raras entrevistas que concedeu:
** Playboy, 1976 – “O sexo sem amor é enjoado, torna-se uma ginástica cansativa e é só. Lembro um colega que dizia: ‘Fazer sexo é um trabalho de carregador. Porque desloca o sangue do cérebro transferindo-o ao baixo ventre. Não se pensa mais’. Esse não é meu caso porque eu penso também naquele momento.”
** Annabella, 1979 – “Falar de si significa desnudar a própria alma, expô-la como um corpo ao sol: desnudar a própria alma não é como fazer topless em uma praia cheia de gente.”
** Corriere della Sera, 1979 – “Escrever é um tormento que se aproxima ao masoquismo. Entendo escrever bem. Mesmo quando escrevo com facilidade canso-me de uma forma cruel e depois me sinto como se tivesse carregado toneladas de chumbo morro acima.”
** Amica, 1980 – “A verdade é que agora estou habituada às maldades. Porque sei que nascem da inveja e a inveja é irmã da ignorância. Estou bem em Nova York, porque aqui as pessoas reagem ao sucesso como sendo um merecimento. Na Itália, ao contrário, o sucesso é considerado uma enfermidade, uma doença, uma culpa, alguma coisa pela qual devemos ser punidos. Na Itália, quem tem sucesso no mínimo é corno; e se não é corno é ladrão.”
** Europeo, 1991 – “Desgraçadamente nada revela mais o Homem quanto a guerra. Nada exaspera com igual força a beleza e a feiúra, a inteligência e a estultícia, a bestialidade e o humanitarismo, a coragem e a covardia, o enigma. Enfim, para entender o ser humano, a um escritor a guerra serve mais que qualquer outra experiência.”
Essa foi Oriana Falacci.
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Jornalista