Marília Mendonça deu uma reviravolta no machismo sertanejo e no preconceito contra mulheres
A rainha da sofrência femineja não era conhecida por uma parte da população que torce o nariz para o gênero. Mas a queda do Beech Aircraft de pequeno porte perto de Caratinga provou que Marilia Mendonça pode ser entronizada entre as maiores cantoras do Brasil. Na faixa dos 20 anos, Marília, a moça comum, driblou o machismo urbano, o cancioneiro macho que retrata a companheira como perdida, ingrata, indigesta, e venceu num universo sertanejo tipicamente masculino celebrado em duplas como Chitãozinho& Xororó ou Zezé Di Camargo & Luciano. A moça, além de tudo, era gordinha, nem bonita nem feia, nem cafona nem estilosa, nascida nos cafundós de Cristianópolis.
Marília Mendonça foi em frente na veia romântica, perdeu 21 quilos na pandemia, casou, separou, casou e separou outra vez do mesmo marido, teve um filho, ganhou 38,7 milhões de seguidores no Instagram, teve 33 milhões de visualizações na maior live musical do ano passado, levou um Grammy latino e o maior cachê de cantora, calou fundo na alma das mulheres.
Sofria e expurgava a dor em músicas arrebatadoras. Mas era o avesso da “Amélia” tão boa segundo Ataulfo Alves, que foi abandonada, não conseguiu prender o seu homem. Marilia deu o troco.
Suas músicas escrachadas e diretas, de copo na mão, desmascaravam, como “Infiel” (“iê, infiel, eu quero ver você morar num motel/ estou te expulsando do meu coração/ assuma as consequências dessa traição/…e aí vai ser a ela que você vai enganar”. Também choravam, como em ”Rosa Embriagada” (“uma rosa tão bonita dentro de uma garrafa/ e morreu embriagada sozinha na madrugada… com a maquiagem borrada, cansada dessa vida bagunçada”…). E sempre reabilitavam mulheres, nesse caso as prostitutas, como em “Troca de Calçada” (“hoje você me vê assim e troca de calçada/ mas se soubesse um terço da história me abraçava/ e não me apedrejava”).
Marília gritava a dor das mulheres com seu vozeirão negado pelas gravadoras durante muito tempo. Dizia “Me Ame Mais ou Esqueça-me se for Capaz”, “quando você olhar prá trás eu já fui embora”.
Virou narradora daquela fossa sempre embalada na voz dos homens.
Desafiou: “Você não manda em mim/ Eu sei aonde devo ir/ eu sei o que eu posso vestir/ se tudo o que eu faço te incomoda/ você sabe o caminho da porta/ Se um dia eu mudar pra te agradar/ eu juro que troco meu nome/ Quer me ensinar a ser mulher/ primeiro aprende a ser homem”. E continuou desafiando em “De Quem é a Culpa?” (“não finja que não estou falando com você… me apaixonei pelo que eu inventei de você”)
Marilia sempre escrachou, “amante não tem lar, amante nunca vai casar”. E botou pra quebrar em “Impasse” (“resolve esse impasse/ e assuma pra gente essa louca paixão/me abraça e me beija/que eu tomo conta de você”). Avisou, “preocupa não que eu não vou bater mais no seu portão”. E desmascarou outra vez em “Sentimento Louco” (“eu sei que é errado, mas quem vai entender… você é casado e eu não quero perder”)
Todo mundo vai sofrer, como na música dela:”quem eu quero não me quer/ quer me quer, não vou querer/ ninguém vai sofrer sozinho/ todo mundo vai sofrer/ Marilia tá aqui com vocês”.
Quem diria que seria Marilia Mendonça a acordar no ano 2000 as mulheres que se acostumaram com a música sertaneja só masculina nos anos 70, 80 e 90. A “Patroa” quebrou uma corrente, embarcou direto na onda de Inezita Barroso, Irmãs Galvão, Nalva Aguiar, Nhana, Roberta Miranda; e venceu.
Dilacerou corações dos seus 19 aos 26 anos; a partir dos 22 anos já liderava o movimento da lírica feminina nas mesas de bar, venceu preconceitos de forma, sexo, idade, classe social. Simone de Beauvoir adoraria Marilia; se Camille Paglia ainda não ouviu, vai gostar.
Marilia sempre apoiou as mulheres; basta ouvir “o cara que estava comigo deu em cima de você/ , eu não vou deixar de ser sua amiga por causa de um qualquer,/ que não respeita uma mulher,/ se quem estava comigo era ele, a culpa é dele, / quem fez essa bagunça na nossa amizade foi ele …/ mulher que deixa de ser amiga de outra mulher por causa de um macho,/ vale menos que o macho…/ amiga, que cara é essa aí?”
Agora é que são elas! Marilia, velada neste fim de semana, conseguiu a atenção das mulheres que torciam o nariz e os ouvidos para o gênero. Vão cair de boca no feminejo e talvez até passem a adotar o estilo visual que taxavam de louro-cafona da rainha da sofrência. Viva ela. Foi primeira página em toda imprensa, bombou nas redes sociais. Seria capa de muitas revistas femininas no 8 de março, Dia da Mulher.
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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).