Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Anistia e política do esquecimento: a necessidade de punir os atentados golpistas

(Foto:
Joedson Alves/Agencia Brasil)

Nos últimos dias, diversos meios de comunicação noticiaram o atentado do dia 13 de novembro em Brasília, no qual Francisco Wanderley Luiz executou um ataque a bomba na Praça dos Três Poderes. As abordagens oscilaram entre interpretações que atribuíam o evento à saúde mental de Francisco e outras que explicavam o evento a partir do extremismo político estimulado pelo bolsonarismo.

Em nossa abordagem pretendemos apresentar a inter-relação possível entre ambas análises. Isso porque, considerando o fenômeno do comportamento de massas conceituado por Freud (2011) é possível compreendermos o comportamento do autor do atentado, dentro da perspectiva da psicologia das massas.

É fato notório que o bolsonarismo foi capaz de produzir uma verdadeira realidade paralela entre seus seguidores, gerando fenômenos de massa espontâneos e imprevisíveis. De acordo com a psicologia das massas, a partir da união de membros de uma multidão, uma massa pode ser formada quando um grupo considerável de pessoas apresenta uma coesão no sentido de um interesse em comum ou uma orientação afetiva semelhante. O simples fato de terem se tornado massa insere uma espécie de alma coletiva que faz com que os indivíduos sejam sugestionados, ou seja, que eles sintam, ajam e pensem de forma diferente das quais fariam isoladamente, num estado aproximado ao da fascinação num hipnotizado. Esta sugestionabilidade torna-se mais potente na massa, pois a sugestão é a mesma para todos, e assim exacerba essa reciprocidade. Isso faz com que um indivíduo na massa tenha sua capacidade intelectual reduzida e perca algumas de suas faculdades, como a personalidade consciente, a vontade e o discernimento, passando a agir de forma inconsciente e instintiva. Há, também, uma sensação de homogeneidade entre os indivíduos que suportam as especificidades individuais, igualam-se e não sentem repulsa uns pelos outros (FREUD, 2011).

Partindo da constatação de que os membros do bolsonarismo, entendido como movimento de massa, compartilham a ilusão de viver em um mundo no qual travam a luta divina do bem contra o mal, os efeitos produzidos por esta crença a nível individual são totalmente imprevisíveis. Como defende Freud, a massa é anônima e, portanto, irresponsável, fazendo com que desapareça por completo o sentimento de responsabilidade que retém os indivíduos. O indivíduo na massa adquire, pelo simples fato do número, um sentimento de poder invencível, permitindo-lhe ceder a seus instintos (FREUD, 2011). Estes comportamentos podem ser ilustrados pelos atos de vandalismo observados nos atos golpistas de 08 de janeiro de 2023, alguns grotescos, como no caso do homem que, coberto por uma bandeira nacional, defecou no STF.

Nesta realidade paralela criada pelo bolsonarismo, os membros desta massa acreditam que suas liberdades individuais estão ameaçadas, que um grupo político usurpou o poder político e jurídico e que existe um projeto demoníaco em curso no país. O autor do atentado a bombas na Esplanada dos Três Poderes, Francisco Wanderley Luiz, por exemplo, associava a esquerda ao satanismo em suas redes sociais, acreditando na teoria QAnon, que defende que os adeptos da esquerda são adoradores de Satanás, pedófilos e canibais.

Vale lembrar que uma particularidade da massa bolsonarista é que seus indivíduos são sistematicamente alimentados com fake news propagadas em redes sociais, em cerimônias religiosas e em discursos extremados de representantes políticos. Tudo isso contribui para a criação de uma verdadeira realidade paralela, compartilhada por militantes da extrema direita em todo país. As massas não requerem verdades, mas sim ilusões e ambas não têm distinção para elas (FREUD, 2011). Os efeitos produzidos por este fenômeno podem ser sentidos em comportamentos coletivos, como ficou visível nos atendados de 8 de janeiro de 2023 ou em outros comportamentos extremados de bolsonaristas. Ao mesmo tempo, membros desta massa podem assumir protagonismo, levando a cabo atos extremos como fez Francisco Vanderley no dia 13 de novembro na Esplanada dos Três Poderes.

Porém, a atuação do mencionado homem-bomba não pode ser entendida de maneira individualizada ou isolada. Por mais que Francisco tenha agido sozinho, sua atuação está inserida em um movimento de massa que forneceu todo o repertório psíquico que o fez acreditar que seria legítimo sacrificar sua vida em prol de uma causa maior. Neste sentido, Freud defende que, na massa, o indivíduo “tem a espontaneidade, a violência, a ferocidade, e também os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos” (FREUD, 2011, p. 18). Este apelo ao heroísmo, inclusive, sempre esteve presente nos discursos da extrema direita no Brasil.

Vale lembrar que em um evento de campanha no Rio de Janeiro, em 2022, o líder deste movimento de massas, Jair Bolsonaro, afirmou que os militares juravam dar a vida pela liberdade. Em seguida, o ex-presidente pediu que todos os presentes jurassem também, em público e coletivamente, dar a vida pela liberdade. Sobre o papel do líder, Freud defende que é comum que, quando estejam reunidos, os indivíduos necessitem de um líder, um chefe supremo, a quem obedecem instintivamente. Os impulsos aos quais se obedece, sejam eles nobres ou cruéis, heroicos ou covardes, estão acima de qualquer interesse pessoal, mesmo o da autopreservação (FREUD, 2011). Assim, certamente Francisco Wanderley acreditava pertencer a um movimento cruzadista inserido na luta do bem contra o mal, pelo qual seria legítimo abrir mão de sua própria vida.

Outro indício de que Francisco considerava estar inserido em um movimento maior que ele, é a referência feita a Débora Rodrigues no espelho de sua casa. A inscrição dizia, “Debora Rodrigues: Por favor, não desperdice batom! Isso é para deixar as mulheres bonitas. Estátua de merda se usa TNT”. Vale lembrar que foi a mulher citada quem pichou a estátua da Justiça no atentado antidemocrático de 8 de janeiro de 2023. Tal menção mostra a representação dos golpistas presos como mártires do bolsonarismo e a identificação de Francisco com estes golpistas já que, assim como eles, o homem-bomba abriu mão de sua individualidade em prol do movimento de massas bolsonarista.

Dentro da realidade paralela criada pelo bolsonarismo, as instituições republicanas, criadas para a defesa da democracia, seriam as ameaças à ordem democrática e à liberdade do povo brasileiro. Povo, aqui, entendido em uma perspectiva messiânica, em um verdadeiro movimento cruzadista, no qual os verdadeiros patriotas e cristãos combatem seus inimigos que conspiram contra a pátria e contra os pilares da verdadeira fé.

Este apelo ao sacrifício individual por uma causa maior também parece estar presente na atuação do núcleo duro do bolsonarismo, que levou a cabo conspirações para a interrupção da ordem democrática após a derrota nas urnas. Isso porque os documentos revelados por Alexandre Moraes em 19/11/24 citam que os envolvidos na conspiração para envenenar Lula, Alckmin e Moraes consideravam que “os danos colaterais (do golpe de Estado) seriam muito altos, que a chance de ‘captura’ seria alta e que a chance de baixa (termo relacionado à morte no contexto militar) seria alto”.

Podemos perceber que, assim como Francisco, o policial e os quatro “kids pretos” do Exército detidos admitiam o risco de morte em suas ações, movidos pelo repertório psíquico do movimento bolsonarista.

Deste modo, ficam evidentes os danos que o referido movimento ocasionou a seus seguidores, culminando na morte de Francisco. Do mesmo modo, podemos considerar o que bolsonaristas causaram aos seus supostos inimigos, como podemos perceber pelos casos de violência política e até mesmo assassinatos ocorridos no processo eleitoral de 2022. Neste sentido, Freud explica que a massa tende a ser cruel, hostil e intolerante com seus não seguidores (os de fora, os infiéis). (FREUD, 2011)

Além disso, fica cada vez mais evidente a ameaça real à democracia produzida pelo bolsonarismo. Podemos citar a minuta golpista, encontrada com membros do alto escalão do governo do ex-presidente, os atentados golpistas de 08/01/2023, o ataque a bombas de 13/11/24 e a conspiração para assassinar os membros da chapa eleita em 2022 e o ministro do STF Alexandre de Moraes, revelado em 19/11/2024.

A despeito de todos estes graves eventos, lideranças políticas da extrema direita tentam articular um projeto de anistia aos condenados por atos golpistas. No mesmo dia em que a conspiração golpista que visava interromper o Estado Democrático de Direito no Brasil foi revelada pela Justiça, a Comissão de Segurança Pública do Senado discutiu a anistia aos presos do 8 de janeiro.

Segundo a transcrição da discussão, publicada no site da Rádio Senado, senadores, como Eduardo Girão, pediram anistia para os que chamam de “presos políticos” e alegaram que só haverá pacificação no país com a soltura destes criminosos.

A sessão contou ainda com a presença da advogada Carolina Siebra, que representa uma associação criada por familiares dos condenados nos atentados golpistas. A simples leitura do nome do movimento (Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro) é capaz de revelar o modus operandi da extrema direita para manter seus seguidores na realidade paralela criada por este movimento de massa. Referir-se aos criminosos condenados como vítimas revela a clara intenção de alimentar o discurso de que o Brasil vive um Estado de Exceção comandado por membros de instituições republicanas, como o STF, e que os golpistas condenados são mártires da luta pela liberdade.

Diante da gravidade dos eventos de 8 de janeiro de 2023, é, no mínimo, assustadora a articulação das lideranças da extrema direita a favor da anistia e a manipulação da verdade realizada por agentes públicos, em espaços democráticos, como o Senado Federal.

Referir-se aos condenados como presos políticos também ilustra a atuação organizada de bolsonaristas para alimentar a realidade paralela que fornece o repertório psíquico para a atuação dos envolvidos nos atentados antidemocráticos tratados em nosso texto. Somente em um movimento que produz massa influenciável, crédula e acrítica (Freud, 2011) é possível representar como vítimas pessoas que atentaram contra a democracia, contra o patrimônio público, histórico e artístico nacional.

Vale lembrar que entre os crimes pelos quais tais criminosos foram condenados estão: associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, com penas que chegam a 17 anos de prisão.

No dia 29 de outubro, o presidente da Câmara, Artur Lira, criou uma comissão especial para debater a anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos. A articulação de Lira, que impediu temporariamente a votação do Projeto de Anistia, está inserida em um contexto em que o político usa esta questão para barganhar vantagens para seu grupo político junto ao Poder Executivo.

Neste sentido, o espaço existente no Congresso Nacional para a existência de um projeto de lei de anistia para aqueles que afrontaram o Estado Democrático de Direito e as próprias Instituições Republicanas é uma verdadeira aberração política.

Convém questionarmos qual seria o papel da Câmara e do Senado hoje, caso as tentativas de golpe tivessem logrado êxito? Certamente, dentro do Estado de Exceção que seria implementado, as funções republicanas do Congresso Nacional não seriam respeitadas, o que torna a defesa da anistia por membros destas instituições algo totalmente incompreensível.

A grande mobilização da extrema direita em prol da anistia cumpre um objetivo imediato, que é libertar os criminosos envolvidos nos atos antidemocráticos, além de produzir a memória de que estes infratores são mártires da luta pela liberdade, já que teriam sido vítimas de processos injustos. Neste sentido, o que está em jogo também é que narrativa sobre os atentados será transmitida por meio da memória social, política e histórica que serão produzidas sobre estes trágicos eventos.

A importância da memória para a identidade, para o pertencimento e para a projeção do futuro

Podemos pensar na memória a partir dos mecanismos de acumulação, de conservação, de atualização ou de reconhecimento de uma lembrança, mas também relacionar a memória com o compartilhamento de representações sociais. Autores como Halbwachs, refletiram sobre as vinculações entre memória individual e memória coletiva. O autor francês, morto em um campo de concentração nazista, pode ser considerado o criador do conceito de memória coletiva, ao defender que os contextos sociais atuam como base para os processos de recordação e localização das lembranças, envolvidos no fenômeno de reconstrução da memória. Deste modo, Halbwachs tira a memória de uma dimensão apenas individual para inseri-la em uma dimensão coletiva, propondo que as memórias de uma pessoa nunca são apenas suas, já que as lembranças não podem coexistir isoladas de um grupo social em que o sujeito está inserido (HALBWACHS, 1990, pp. 25 – 52). Ou seja, nossa inserção familiar, social e política influencia diretamente em nossas lembranças e representações feitas de eventos importantes ou marcantes para uma determinada sociedade.

Neste sentido, o conceito de metamemória de Joel Candau (1998) nos auxilia na compreensão do elo entre o sujeito e o coletivo, conforme aponta Ferreira: 

Abordada como a representação que cada sujeito faz de sua própria memória, a metamemória se vincula àquilo que o autor denomina como “sóciotransmissores” tais como família, religião, narrativas, etc. Assim quando se passa do indivíduo ao grupo, essa metamemória é uma dimensão essencial da crença em uma memória compartilhada e reivindicada (…). (FERREIRA, M. L. M., 2011, p. 105).

O fenômeno descrito acima é bastante observado no movimento do bolsonarismo, já que o contexto social em que seus seguidores estão inseridos influi diretamente na memória coletiva que estas pessoas compartilham de eventos como a Ditadura-Civil Militar, rememorada entre eles como um período de ordem, prosperidade, segurança, respeito aos preceitos da religião e da concepção da família tradicional.

Outro aspecto importante é que a construção da identidade cultural se relaciona de maneira dialética com a memória: ao passo que a memória fornece os subsídios para a elaboração de um discurso coeso, essa mesma narrativa passa a integrar o substrato da memória – partilhado por toda a coletividade. Neste sentido, Pollak defende que a memória “é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fato extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (POLLAK, 1992, p. 204).

Assim, podemos considerar que ao mesmo tempo que o contexto social em que se inserem os bolsonaristas influencia na memória coletiva possuída por estas pessoas, suas identidades e seus sentimentos de pertencimento a este grupo são determinados pelas memórias que estes compartilham de eventos importantes do passado, como citamos em relação à representação feita do período autoritário brasileiro.

Neste sentido, a memória nostálgica do período do governo ditatorial dos militares no Brasil é um dos elementos que identifica os elementos que constituem a massa bolsonarista, influenciando a atuação destas pessoas na tentativa de participarem da construção do futuro. Ou seja, é possível estabelecer uma relação entre a memória do passado compartilhado pelos seguidores do bolsonarismo e a projeção do futuro realizada no interior deste grupo. Deste modo, podemos entender os atos antidemocráticos como um movimento do presente ao futuro, a partir da representação do passado existente na memória coletiva destas pessoas.

A política de esquecimento do período da ditadura e seus impactos na atualidade

Podemos considerar que a política do esquecimento implementada ao fim da Ditadura Civil-Militar foi fundamental para a persistência de representações otimistas e nostálgicas do regime autoritário brasileiro, assim como para a existência de conspirações e atentados de caráter antidemocrático como os noticiados nos últimos dias.

É possível ilustrar a política do esquecimento no Brasil por meio, por exemplo, da Lei de Anistia de 1979 (Lei 6.683/79), proposta pelo ditador João Baptista Figueiredo. A mencionada lei cumpriu dupla finalidade: uma imediata, que foi a impunidade dos agentes da ditadura envolvidos em diversos crimes contra a humanidade; e outra de médio e longo prazo, que foi o esquecimento destes crimes por grande parte da população brasileira.

Com relação aos interesses dos agentes da ditadura, Selligmann-Silva reforça que a Lei de Anistia foi feita “pelos agentes da ditadura e para estes mesmos agentes” (…) produzindo como consequência “a suspensão de toda futura tentativa de se concretizar a justiça”. Ou seja, “os donos do poder se apropriaram da anistia para convertê-la em mecanismo de impunidade” (SELLIGMAN SILVA, 2006, pp. 2-3).

Já em relação aos efeitos deste esquecimento para a memória coletiva de parte da população brasileira, consideramos que foram fundamentais para a existência de representações positivas do período autoritário e para a existência de ataques à democracia apoiados por parte da população brasileira na atualidade. Além disso, tal esquecimento possibilitou que rodovias, viadutos e outras obras públicas fossem inauguradas com o nome de ditadores sem despertar a reação de grande parte dos brasileiros, que naturalizaram conviver com homenagens ao regime de terror institucionalizado pelo golpe de 64.

O dever de memória e a necessidade de impedir uma nova lei de anistia

Ao contrário da política do esquecimento, outros países adotaram a política do dever de memória. Tal conceito começou a ser discutido na França, na década de 1950, fazendo referência ao dever de recordar os soldados que morreram na guerra lutando contra o nazifascismo. Na década de 1970 a ideia ganhou força no debate do holocausto, assumindo o significado de fazer justiça às vítimas dos horrores praticados, por exemplo, nos campos de concentração nazistas.

Ledoux (2009), condenou a política do esquecimento como uma patologia moral, ao tratar do holocausto, defendendo o dever de memória como possibilidade de reparação de sofrimentos impostos a indivíduos e comunidades no passado (LEDOUX, 2009, p. 10). A mesma visão influenciou pesquisas produzidas no Brasil, como a de Heymann, que sustenta que o dever de memória é uma forma de “afirmar a obrigação que tem um país de reconhecer o sofrimento imposto a certos grupos da população, sobretudo quando o Estado tem responsabilidade por esse sofrimento” (HEYMANN, 2007, p. 21).

Neste sentido, combater a política do esquecimento é uma forma de reparar sofrimentos, garantir justiça e garantir a memória da verdade sobre eventos históricos para que os erros do passado não sejam repetidos no presente ou no futuro. É admitir que “as nossas experiências do presente dependem, em grande medida, do conhecimento que temos do passado e que as nossas imagens do passado servem para legitimar a ordem social vigente” (CONNERTON, 1999, p. 4). Connerton ainda defende que “viveremos nosso presente de forma diferente de acordo com os diferentes passados com que podemos relacioná-lo” (CONNERTON, 1999, p. 2)

Deste modo, a proposta de uma nova Lei de Anistia, diante de um cenário de ameaças reais ao Estado Democrático de Direito é um grave risco à continuidade da democracia no Brasil. Por um lado, a história brasileira mostra que golpistas anistiados tendem a não desistir de seus intentos, como ocorreu durante o governo de Juscelino Kubitschek, que anistiou golpistas que três anos depois tentaram um novo golpe contra o referido presidente. No governo posterior, Jânio Quadros anistiou os mesmos golpistas e outros envolvidos neste segundo ato antidemocrático. Entre os anistiados estava o capitão Burnier, da aeronáutica, um dos envolvidos no golpe de 64.

Por outro lado, uma nova anistia produziria uma nova política do esquecimento, transformando golpistas em mártires da extrema direita e justificando novos atos democráticos no futuro. Além de contribuir para o fortalecimento do bolsonarismo como movimento de massa, fornecendo repertório psíquico para a existência de novos Franciscos Wanderleys, novos militares golpistas e novas ameaças ao Estado Democrático de Direito no Brasil.

Portanto, é fundamental que a mídia e toda a população brasileira cobrem das autoridades a punição irrestrita a qualquer indivíduo envolvido em atos antidemocráticos ou tentativas de golpes de Estado. Além disso, é necessário mobilização contra a aprovação de uma nova política do esquecimento no Brasil, representada pela proposta da Lei de Anistia para favorecer os golpistas de 8 de janeiro de 2023. Toda a sociedade deve assumir o compromisso de que a memória construída dos tempos sombrios vividos pelo país nos últimos anos tenha como base a verdade, a justiça e a defesa ao Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS:  

CONNERTON, P. Como as sociedades recordam. Lisboa: Celta Editora, 1999.

FERREIRA, M. L. M. Políticas da memória e políticas do esquecimento. Revista Aurora, vol. 10, 2011, p. 102-118.

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

HALBWACHS, M. A memória coletiva (Trad. Laurent León Schaffter). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 1990.

HEYMANN, L. Q. O devoir de mémoire na França contemporânea: entre memória, história, legislação e direitos. In: GOMES, Angela de Castro (coord.). Direitos e cidadania: memória, política e cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2007, pp. 15-43.

LEDOUX, S. Pour une genealogie du devoir de mémoire. Paris, Centre Alberto Benveniste, 2009.

POLLAK, M. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, 5 (10), 1992, p. 200-212.

SELLIGMAN SILVA, M. 2006. Anistia e (in)justiça no Brasil: o dever de justiça e a impunidade. Literatura e Autoritarismo, Memórias da Repressão, n. 9. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/LA/article/view/73980/51380. Acesso em 20/11/2024.

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Diogo Comitre é professor na IFSP, mestre e doutorando da História Social da USP, pesquisador convidado na Universidade Complutense de Madrid, bolsista CAPES PrInt.

Ana Carolina Diniz Rosa Comitre é professora da UNISO, mestra e doutoranda da Saúde Coletiva da Unicamp, pesquisadora convidada na Universidade de Zaragoza, bolsista PDSE CAPES.