Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As histórias a serem contadas sobre João Gilberto

João Gilberto. (Foto: Divulgação)

A personalidade reclusa de João Gilberto sempre foi uma dificuldade para os jornalistas. Um artista que conseguiu, ao longo da vida, se blindar de todo tipo de espetacularização e do culto às celebridades que caracterizam o mundo contemporâneo. Dele, sabíamos por relatos de outros artistas e amigos que desfrutavam de sua intimidade, quase sempre dando conta de algum comportamento excêntrico que acentuava a aura de genialidade em torno de sua música. Havia uma distância quase intransponível que se acentua na despedida. “É no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessas substâncias que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível”, escreve Walter Benjamin num texto clássico, O narrador.

Uma das exceções é uma reportagem do ano 2000 publicada originalmente pela Folha de S.Paulo e republicada no último dia 07, em que Mário Sérgio Conti acompanha a intimidade do artista numa excursão em Barcelona. O que se vê ali é João brincalhão, humano, capaz de lembrar de poemas de Carlos Drummond de Andrade e saudar a vida. “A regra é essa, quanto mais humilde a pessoa, quanto mais pobre, com maior educação e gentileza o artista a tratará”, escreve Conti. O personagem simpático que emerge da narrativa dá conta de certa superficialidade na crítica musical. “Quando é comigo, eles escrevem: ‘João Gilberto reclamou do som. João Gilberto cantou de novo O pato e Chega de saudade. O show só engrenou do meio para o fim, quando João Gilberto engatou uma quarta’.”

A reportagem de Conti – devem existir outras tão boas quanto – demonstra uma abertura do diálogo que parte da crítica e do jornalismo não conseguiu acessar durante a trajetória de João Gilberto. No fim da vida, as histórias das brigas familiares ganharam as pautas. Mas elas conviveram também com umas formas mais sensíveis de jornalismo cultural, presentes tanto no livro do jornalista alemão Marc Fischer (Ho-ba-la-lá – à procura de João Gilberto, lançado pela Companhia das Letras em 2011) quanto no documentário Onde está João Gilberto?, do cineasta francês Georges Gachot. Há uma ligação profunda entre o livro, o documentário e a arte do músico brasileiro. Fischer morreu aos 40 anos, pouco tempo antes do lançamento do livro.

A singularidade do filme está no cruzamento de três pontos: o artista inatingível, a busca do jornalista cruzando o oceano seduzido pelo mistério de uma canção e o cineasta que se identifica com a dupla obsessão – a de Fischer por sua pauta e a de João Gilberto por sua arte. Sem deixar de ser um documentário sobre João Gilberto, trata também do que move Fischer: “No fundo, foi por causa de Ho-ba-la-lá que vim ao Rio. Quero que João toque a canção para mim”, escreve o jornalista em seu livro. Gachot, por sua vez, filma um Rio de Janeiro intimista, com imagens que servem à descrição de sua própria experiência remetendo ao jogo criado pela investigação de Fischer. A dialogia despertada pela canção que bateu fundo na alma de Fischer captura também o cineasta.

O documentário traça uma cartografia capaz de iluminar a bossa nova de João Gilberto e demonstrar, ao mesmo tempo, como o jornalismo pode ser um instrumento de trocas culturais, afetivas e simbólicas. Fischer foi apresentado à música de João Gilberto por um amigo japonês em Tóquio: “O que tínhamos ouvido é a essência de alguma coisa. O resultado final. Como os contos de Hemingway, depois de ele ter cortado os adjetivos”, descreve.

Muito haveria a dizer sobre a música – uma das raras composições de João Gilberto -, mas é melhor recorrer à gravação: “Quem ouvir o ho-ba-la-lá, terá feliz o coração/ O amor encontrará, ouvindo essa canção, alguém compreenderá seu coração”. Fischer entendeu o recado para além das barreiras linguísticas. Talvez porque, como nos lembra Luiz Tatit, na bossa nova de João o que se tem a dizer e a maneira de dizer se encontram de forma mágica. O mistério traz em si a necessidade de decifrá-lo, de desbravar territórios físicos e simbólicos atrás de respostas que estão em nós mesmos. Essa é a dimensão maior da experiência jornalística de Fischer. Afinal, o que move o repórter?

É das subjetividades que se trata. “A mola propulsora da bossa nova: o anseio por amor, por redenção, por felicidade, por transcendência, sabendo ser na verdade ingênuo considerar tudo isso possível. Para que as coisas caminhem, o anseio deve cessar; para que as coisas caminhem, ele deve permanecer para sempre – assim pensa o bossa-novista”, conclui Fischer numa das respostas de suas buscas à procura de João Gilberto.

A alma exterior do artista é o Brasil profundo: devires indígenas, africanos, europeus no sertão da Bahia que ele traz pro Rio tomando um atalho em Diamantina – onde se deu a invenção da batida da bossa nova em seu violão. “O que teria acontecido com ele durante aquela viagem pelo Brasil? O que tinha encontrado e, talvez, perdido? Teria vendido a alma ao diabo para poder cantar e tocar como ninguém, ao preço de, dali em diante, ter de viver em um mundo de sombras?”, escreve o jornalista sobre esse episódio.

O texto de Fischer revela-nos a melhor escola do jornalismo literário, esse gênero que não pode ser esquecido diante dos desafios impostos à prática em tempos de desinformação. O mundo digital tem também uma enorme fome por narrativas. A arte de contar histórias que aproxima o jornalismo da literatura não só permanece como se torna cada vez mais necessária.
“Como interpretar o fechamento de João aos encontros?”, perguntam-se jornalista e cineasta o tempo todo. O silêncio para que sua música – só ela – apareça? A potência de resistir à espetacularização do social, apegando-se ao pouco da vida interior possível? Ou é simplesmente um doido, como afirmam algumas pessoas entrevistadas por Fischer?

Do homem, pouco se é dado a saber; especulações de toda parte se transformam em lendas. “Dizem que odeia tanto as pessoas que não consegue suportá-las. Dizem que ama tanto as pessoas que não consegue suportá-las”, escreve Fischer.

A reportagem de Mário Sérgio Conti nos traz o homem envolto na aura de amor que transparece na sua forma de interpretar as canções. No aeroporto de Madri, enquanto aguardavam o voo para Barcelona, João comenta com o jornalista quando passa uma senhora com uma jovem. “Que bom que as avós vivem bastante na Alemanha. Lá vai a avó; lá vai a neta; lá vai a vida.”

A vida que se foi deixa no ar a nostalgia por muitas histórias a serem contadas sobre o inventor da batida da bossa nova. Tomara que o jornalismo esteja à altura de fazê-lo.

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Pedro Varoni é jornalista.