Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As sete vidas de Fernando

Vida lusófona como a de Fernando Correia da Silva merece uma biografia tão intensa quanto as duas centenas que povoam as páginas de seu site Vidas Lusófonas. O que ele não esperava era integrar seu elenco de ilustres protagonistas. O escritor e jornalista, impedido de se formar em Ciências Econômicas pela perseguição e detenção da polícia salazarista (PIDE), morreu esta semana em Lisboa, onde nasceu.

Como muitos resistentes ao regime ditatorial português iniciado com o Estado Novo em 1933, fugiu para o Brasil em 1954 onde permaneceu até a Revolução dos Cravos, em 1974. Com uma energia que só a morte extinguiu, o imigrante não se apertou. Na Folha de S.Paulo criou e dirigiu o suplemento “Folhinha”, fundou o jornal antifascista Portugal Democrático, foi coordenador editorial da Difusão Européia do Livro (Difel) e junto com Cecilia Meireles, Guilherme Figueiredo, Maria Bonomi, Jorge de Sena, Fernando Lemos criou a editora infantil Giroflê.

Só por essas investidas o Brasil será devedor de Fernando Correia da Silva. Mas ele deu mais: entre 1960 e 63 lançou Os Descobridores e Os Libertadores (Cultrix, onde também era o coordenador editorial) editados entre 1960/63, e o livro de contos infantis O Sindicato dos Burros.

Gargalhada sonora

Sarcástico e sempre irreverente, amante do cigarro, dos amigos brasileiros e dos “copos”, ele era um pândego contador de histórias e surpreendia a quem perguntava sobre sua formação literária. “Talvez a turbulência de Camilo, a ladinice pícara de Aquilino, o realismo de Graciliano Ramos e Manuel da Fonseca. Também o sarcasmo de Alexandre O’Neill…” Fernando era ele próprio um curso de escrita. Quando chegou ao Brasil já havia lançado um livro de poemas, Colheita, uma novela infantil, As Aventuras de Palhita, o Touro; junto com Alexandre O’Neill criou um jornal clandestino de poesia militante, A Pomba.

Do Brasil apoiava junto com Agostinho de Silva, Marcelino dos Santos e Vasco Cabral a independência de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tome e Príncipe. Os anos de chumbo que ele chamava de “golpada militar” forçaram o exilado e exilar-se outra vez numa indústria em Fortaleza – onde o que mais aprendeu, como ele dizia, foi a arte da “ostentação em contraste com a miséria, o vampirismo sem disfarces!”.

Já estava casado com a brasileira Rosa Feldman, pianista que conheceu em Bucareste, com quem teve três filhos (Ethel, Paula e José) e aprendeu, além do humor judaico, algumas frases em “idisch”. Mas aos ecos do salazarismo varrido e com a chegada ao Brasil dos exilados “do lado de lá”, chegou a hora do retorno para antigos emigrantes, e Fernando Correia da Silva foi junto. Era enfim a liberdade em seu próprio país. No meio da euforia de 1974, trabalhou em tempo integral nas cooperativas de produção e tudo ia bem. “Porém”, decepcionou-se, “os mandarins retomaram o poleiro.”

Desistir? Nunca. Em Lisboa lançou mais sete livros, entre eles os romances Mata-Cães (Salamandra) com o herói pícaro que desembarca em pleno 25 de abril. O herói continua sua aventura em Lord Canibal (O Jornal). Com Maresia (Campo das Letras) aguçou a curiosidade do leitor, “e se a espécie humana fosse sujeita a períodos de cio, o que aconteceria às relações entre homens e mulheres?”. Em Lianor (Orabem) adverte o leitor: “Lianor se faz ao mar e a bordo leva alguns salvados de um certo naufrágio… sem o saber explicar, Afonso Dias da Costa recorda-se de ter vivido em tempos passados e Pedro Álvares Cabral, quando se maravilhava com a visão das mocinhas índias desnudas, em terras de Vera Cruz, teve-o por companheiro… do mesmo modo o teve Frederick Engels…”. Querença (Editorial Notícias), adaptado para o cinema, anunciava “o meu apego ao local de origem, onde fui feito, onde nasci, onde bebi do leite e das águas, onde cresci, onde cacei o meu primeiro fascista, onde amei, onde fiz filhos”. Ele completava a definição de seus romances com a mesma gargalhada sonora que o marcou.

Foi coordenador editorial dos cadernos “Oitenta Vidas que a Morte não Apaga” do jornal Público, onde não deixou de fora Jesus Cristo, Kennedy, Adolf Hitler. O resto do tempo dedicou à sua última criação, o site Vidas Lusófonas, uma extraordinária experiência de biografismo digital.

Cone do tempo

Seu estilo forte, seco, limpo, direto e irônico passeou pelas vidas do coronel Rondon, Castro Alves, Fernão de Magalhães, Cesário Verde, Inês de Castro a que morreu sem nunca ter sido, Oswaldo Cruz, Simon Bolívar, Fernão Mendes Pinto, o embaixador Souza Mendes que salvou a vida de milhares de judeus e foi punido por Salazar, Zumbi dos Palmares, Anchieta, a Rainha Jinga, o padre voador Bartolomeu de Gusmão, D. Helder Câmara, D. Pedro I, Florbela Espanca, Eça de Queirós, o Aleijadinho, Carlos Drummond de Andrade, e haja fôlego para tantas vidas escritas com tanto estilo. “Há outras formas de escrever e de falar, afinal a língua portuguesa já saiu da estufa”, dizia.

Lampião, por exemplo, começa assim: “Depois de ouvir missa na Igreja da Glória, cidade da Bahia, nos limites com Pernambuco e Alagoas, o capitão Virgulino Ferreira da Silva, cabeça descoberta, sem arma de fogo, cai de joelhos, benze-se e, em passo manco, sequela de uma bala, vai cumprimentar o padre Emilio Ferreira… O sacerdote: ‘Estou mesmo diante do rei do Nordeste?’ E Lampião: ‘Para servir Vossa Reverência’”.

Vidas Lusófonas, apesar das cerca de 30 milhões de visitas desde 1998, não conseguiu patrocínio, o que não impedia o quixotesco Fernando Correia da Silva de continuar, continuar, continuar. A vontade era tanta que leitores, admiradores, amigos e a filha jornalista e escritora Ethel Feldman não deixarão o projeto morrer. Repetem, como ele gostava de citar, Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Ethel vai finalizar com o irmão cineasta José um filme sobre o pai que começa com Fernando anunciando a vontade de continuar a saga do Mata-Cães: “Ele é eterno, não morre nunca”. Ethel diz que não se sente devedora do pai porque “nas nossas contas nunca houve crédito nem débito. Por outro lado devo-lhe quase tudo”.

Ela também vai tentar publicar o romance A Cor dos Homens, o que Fernando não conseguiu em vida.

“Aurélio, eu gostava de viver numa cidade à beira-mar. Não estou a falar da Capital mas de uma outra cidade que está à minha espera. Cheia de altos e baixos, uma igreja em cada monte… Todas as semanas visito uma, Deus marcou-me um encontro. Os meus filhos… Sim, porque nessa cidade tenho muitos filhos… Tenho um filho preto casado com uma preta. Tenho um filho branco casado com uma branca. Tenho um filho mulato casado com uma mulata. Mas também tenho um filho branco casado com uma preta e uma filha preta casada com um branco. Tenho uma filha branca casada com uma mulato e tenho um filho mulato casado com uma branca. Tenho seis filhos e três filhas, tenho trinta netos de todas as cores, uns brancos, outros café com leite, mais leite menos café, menos leite mais café, outros cor de tição. Não sei o nome da cidade…mas antes de morrer hei-de-saber.”

Fernando deixou no blog A Viagem dos Argonautas muitas colaborações na seção "Contos e crônicas", mas a semente da luta que foi sua marca, e onde ensinou como deveriam prosseguir sem ele, foi no Mata-Cães:

“Repara que, na vida, quase sempre é a reta distância mais longa entre dois pontos. Mas para que não emperre a tua manivela, fica-se pois com o elixir da longa vida ou com o meu renascimento a cada quatro gerações da nossa família, ou ainda com o descontrolo magnético do cone do tempo que, sempre que eu chego aos oitenta anos dou por mim a sair da barriga de outra mãe e tudo começa de novo, e se a mona não me falha, sete vidas já lá se vão. Fica com o que melhor te aprouver, mas escuta o que eu tinha para te contar”

Fernando Correia da Silva faria 83 anos na quarta-feira (23/7).

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Norma Couri é jornalista