Inevitavelmente, lembrei-me esta semana do Major Quaresma, o delirante personagem que o gênio de Lima Barreto cunhou em Triste Fim de Policarpo Quaresma. Mais precisamente quando ele, ao teimar em assumir atitudes tipicamente brasileiras, do tempo em que esta terra ainda não conhecera a bota do colonizador, um dia recebeu a visita de amigos, à porta de sua casa, com grandes gritos e lágrimas e lamentações, conforme era comum nas demonstrações de alegria dos nossos ancestrais tupinambás.
Passaram–me também pela cabeça as informações que tenho acerca de culturas orientais onde o nascimento é recebido com choro e a morte é comemorada com grandes festas.
Mas nada disso tem sido capaz, ainda, de limpar de meu coração o grande vazio causado pela perda, ocorrida esta semana, de meu queridíssimo amigo-irmão Roberto M. Moura, meu mano Filé de Borboleta, doutor em Música, Mestre em Comunicação, apresentador de TV, editor, produtor de discos e de shows, jurado do prêmio Estandarte de Ouro do jornal O Globo por mais de 20 anos, professor do curso de Jornalismo da Facha, no Rio, escritor brilhante e pesquisador de música e cultura brasileiras. Uma outra crônica especificamente escrita só para informar seu currículo ainda seria insuficiente.
Inicialmente, minha relação com o Moura foi como a de um garoto que colecionasse figurinhas do Ronaldinho Gaúcho e depois fosse jogar com ele na Seleção ou no Real Madrid. Fui ávido leitor de seu brilhante texto, durante toda a década de 70, em O Pasquim, onde o Roberto era crítico de Música. Depois, nos anos 80, conhecemo-nos ao trabalhar juntos na extinta TV Manchete, um sonho que dezenas de jornalistas acalentamos. Era uma alternativa de tentar quebrar a mediocridade hegemônica da Globo. Cada vez que o nosso Jornal da Manchete dava um pau no Jornal Nacional a gente dava soco no ar e destilava nossa alegria juvenil no Colorbar, um boteco ali no Flamengo, bem do lado da sede da Bloch.
Momentos mágicos
Foram mais de 20 anos de amizade. Vimos nossos filhos crescendo e decolando profissionalmente. Assistimos, impotentes como tantos, às reviravoltas tragicômicas por que este país tem passado. Mas a coluna Cultura & Mídia, do Roberto, publicada na Tribuna da Imprensa, no site da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Brazilian Voice Neswaper, nos EUA, e através de um mailing que chegava às cabeças mais pensantes deste país, seguiu sendo sempre uma trincheira, um foco de guerrilheira resistência contra a babaquice, o engodo cultural, a ladroagem dos direitos autorais dos artistas brasileiros, a bundalização globalizante, como ele chamava tão apropriadamente a avassaladora onda de música ruim que as autoridades da área, o atual ministro da Cultura incluído, nada fazem para enquadrar.
Roberto M. Moura esteve várias vezes em Vitória, para participar de congressos, festivais, palestras em faculdades de Comunicação, algumas vezes a meu pedido. Deixou grandes amigos por aqui. Ao vir lançar aqui, há poucos meses, seu livro No começo era a roda, sua tese de doutorado, rabiscou-me uma exagerada dedicatória que dizia de toda a nossa amizade: ‘Para o Tavares, que das rodas é um dos maiores. Beijo do Roberto Moura.’
Um dia, promovi o lançamento de um livro do Moura em Sampa (Da redentora à praça do apocalipse). Cheguei à Rádio Excelsior, do Sistema Globo, e tentava convencer o produtor de um dos programas da emissora a divulgar o evento. Súbito, uma voz desconhecida disse, por trás de mim: ‘Aqui está a minha agenda com os telefones de todos os sambistas importantes de São Paulo para você convidar para o lançamento.’ A pessoa me estendeu a mão, a agenda aberta: ‘Muito prazer. Leci Brandão.’
Assim era o Moura – querido e respeitado por toda a gente do samba, no Rio, no Brasil e em muitos países onde era convidado para fazer palestras acerca de cultura brasileira, esse negócio que tá virando fast-food galopantemente, sob os olhares babacas de quem foi capaz de trair nossa última utopia.
Depois de ter morado mais de 10 anos no Rio, foi pela mão do Moura que conheci, entre concertos, recitais, rodas de samba, bodegas, livrarias, cantinas e choperias, um Rio de Janeiro que o turista não consegue perceber. Ouvi, de Roberto M. Moura, coisas que nem sempre gostei de ouvir mas que me fizeram crescer um tanto. E tivemos momentos mágicos, inesquecíveis, junto com outros queridos amigos. Jogamos peladas inesquecíveis. No Rio, em Vitória, em São Paulo. O texto que escreveu acerca de Uma janela no muro, meu mais recente livro, até hoje me faz chorar.
Vai passar, mas…
Depois do sepultamento, ocorrido nesta quinta-feira, dia 27, fiquei uns bons minutos sozinho junto ao túmulo. E, de espírito para espírito, reencarnacionista que sou, disse-lhe que, onde nos reencontrarmos, nossos olhos imediatamente nos dirão quem somos. E então retomaremos nossa alegria que uma dengue hemorrágica [está sendo investigada a suspeita de febre maculosa, pois a dengue foi descartada] foi capaz de interromper.
Ao Pablo, seu filho mais velho e hoje um brilhante técnico da Globo, lembrei carinhosamente, em meio a longo abraço, o mestre Guimarães Rosa:
‘Seu querido papai se encantou’.
Na próxima noite clara, estrelada, vou procurar no céu uma estrela nova. E vou achar. E entre nós se reatará imediatamente nossa cumplicidade irmã.
E o Brasilzinho, tadinho, fica mais pobrezinho sem o pensamento crítico, o discernimento, a capacidade de formulação dessa reserva intelectual que foi Roberto M. Moura.
Esta tristeza vai passar, mas, putz, como é difícil, mesmo para um jornalista veterano e calejado, trabalhar perdas.
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Jornalista