Em Yorkshire, numa filial da Biblioteca Britânica, utilizando a mais recente tecnologia, os responsáveis pelos arquivos estão se esforçando para digitar 300 anos de jornais antes que eles virem poeira – e isso é apenas o começo.
Há um sopro no ar, quente e úmido, um reconfortável cheiro de experiência humana, subindo do papel envelhecido. Feche os olhos e você poderia estar numa livraria arruinada de segunda mão. Depois, abra-os e você tem uma visão do futuro.
O Edifício Nacional de Jornais, no Spa de Boston, próximo à cidade de Leed, é um gigantesco cofre de robôs que guarda a abordagem de alta tecnologia que a Biblioteca Britânica chama “memória nacional” – 750 milhões de páginas de notícias, cobrindo mais de três séculos de trabalhos de reportagem por toda a nação. De distúrbios políticos a crises humanitárias, de casos de assassinato a notícias de casamentos locais, está tudo aqui. E continua crescendo. “Vamos acrescentar algo como 1.200 jornais semanalmente”, diz Alasdair Bruce, gerente do Programa de Jornais da Biblioteca Britânica.
Conservar uma memória de séculos não é pouca coisa. Os curadores de todo o país vêm travando uma guerra contra o próprio tempo para deter a deterioração de nossos documentos, seja a Carta Magna, comemorando este ano seu 800º aniversário, ou o jornal de ontem.
Um projeto de R$ 160 milhões
No vazio escuro do Edifício Nacional de Jornais, os robôs estão ativos. Com vinte metros de altura e uma imensa extensão, está uma imponente fila de estantes, sustentando volume após volume de bandejas de jornais, deitados e amarrados entre folhas metálicas. Subitamente, um enorme guindaste autônomo surge, para de repente e, com um urro hidráulico, lança um braço. Içando uma enorme bandeja de metal do andaime, deposita-a numa esteira e corre para o escuro. Um dos três preparados para agir, ele aguarda na penumbra, esperando por uma ordem – os robôs não têm necessidade de luz. A bandeja e sua pesada carga são levadas embora, com uma ligeira curva à direita numa mesa giratória e saem por uma câmara de descompressão. Então, um carro de transporte sem motorista encarrega-se de levá-la a um poderoso terminal de computador. Em algum lugar, um pesquisador fez um pedido e as máquinas participam do caso.
Há mais nisto do que uma insinuação com o filme de ficção científica Insterstellar, e tem que haver. Os jornais impressos têm uma constituição delicada: as flutuações em temperatura e umidade podem acelerar a decadência. Por isso, a câmara de descompressão – o vácuo é mantido a 14º graus centígrados e 55% de umidade, enquanto os níveis de oxigênio são mantidos a 14% (o ar é tipicamente composto por cerca de 21% de oxigênio). Com níveis de oxigênio tão baixos, os conteúdos simplesmente não podem pegar fogo. De maneira semelhante, o material das paredes foi cuidadosamente escolhido para evitar que os jornais fossem danificados.
Não é apenas uma solução astuta, como também é inteligente. Desenvolvido num exame de células feito à medida, o processo é controlado por um sofisticado sistema de computação: cada volume é registrado em código de barras e correlacionado a uma bandeja e tabuleiro específicos; cada bandeja tem uma nota de remissão para uma localização específica. Evita-se o erro humano retirando-se os humanos – os empregados só aparecem em cena depois que chegamos aos terminais de computador, onde é selecionado o volume solicitado de jornais e enviado às salas de leitura.
Dentro, o arquivo funciona como uma boneca russa [matrioska] – um modelo de armazenamento de dados antiquado protegido por um casulo tecnológico. Do lado de fora, as silhuetas dos elegantes edifícios pairam sobre os prédios baixos que, na década de 1940, serviam para guardar munições. O Edifício Nacional de Jornais, que foi inaugurado em janeiro, é uma parte do projeto da Biblioteca Britânica, de 33 milhões de libras esterlinas (cerca de R$ 160 milhões), de realojar a coleção de jornais que foi transferida das arcaicas instalações em tijolo vermelho em Colindale, no norte de Londres, e melhorar sua disponibilidade.
Acesso ao microfilme é limitado às salas de leitura
Mas manter as notícias frescas á uma tarefa complicada. “[Os jornais] destinam-se a ser usados uma vez e depois jogados fora”, explica Alasdair Bruce. Na realidade, eles são seu próprio pior inimigo. Os ácidos – que derivam dos aditivos dos processos de fabricação ou dos poluentes no ambiente dos arredores – cortam as fibras de celulose no papel, tornando as páginas cada vez mais quebradiças. Os jornais mais modernos, feitos com pasta de madeira triturada, e não com trapos de linho ou de algodão, têm cadeias celulares mais curtas e são mais ácidos. A oxidação das páginas torna pior uma situação ruim, fazendo com que elas se tornem amarelas. E à medida que o jornal envelhece, ele solta um pequeno ramo de moléculas orgânicas voláteis; aquele cheiro, que nada tem de reconfortante, é característico da decadência.
Diante da desalentadora tarefa de preservar mais de 750 milhões de página autodestrutivas, a equipe da Biblioteca Britânica espera que as instalações venham a ser um ponto sólido, com o tempo. “Nós investimos no sentido de tentar evitar a deterioração, em primeiro lugar, incorporando os controles de umidade e temperatura e o baixo nível de oxigênio”, diz Bruce.
O crescente arquivo, que retém uma cópia de todos os jornais publicados no Reino Unido (o que é uma exigência legal) é, além disso, uma tarefa incômoda, ainda que maravilhosa. Alasdair Bruce explica: “Por um lado, a Lei dos Direitos Autorais diz que não podemos eliminar um item físico; mas por outro, nós não queremos, porque nos dá a flexibilidade para o futuro – fazer coisas diferentes com esse texto escrito, se tivermos que o fazer.”
Uma dessas coisas é a digitação. Embora muitos jornais populares sejam guardados em microfilme – para evitar que envelheçam ou que se rasguem (a saída de originais dos impressos só é permitida em casos especiais) –, o acesso é limitado às salas de leitura da Biblioteca Britânica. Publicações de segmentos especializados, no entanto, só existem no formato impresso e o acesso a elas só é possível nos cofres robotizados do Boston Spa. O acesso online permite-nos dar uma olhadela onde quisermos, ainda que pagando pela saída das salas de leitura.
Vislumbres de esperança
No ambiente iluminado e clínico da sala de digitação, o trabalho continua a todo o vapor. Uma equipe do site Findmypast, um serviço que monta árvores genealógicas com o histórico das famílias e que está colaborando com a Biblioteca Britânica na criação de um Arquivo Jornalístico Britânico, trabalha arduamente nas máquinas de escaneamento. Cerca de 750 páginas de jornal são digitadas por dia com assuntos que vão até 1955, quando foi suspensa a lei de direitos autorais. Os microfilmes também são digitados, embora a qualidade seja desigual. E com o software de reconhecimento óptico de caracteres fazendo a coleção mais fácil de ser pesquisada, isso torna-se uma bênção para os genealogistas. Mas é um processo longo. “Está levando dez anos para fazer 40 milhões de páginas”, diz Alasdair Bruce, embora o ritmo possa ser acelerado à medida que novas tecnologias se tornem disponíveis.
A tecnologia não está apenas ajudando a preservar o nosso patrimônio cultural: também oferece novas descobertas.
Alojados numa antiga gráfica próxima ao Spa Field Park, em Islington, os Arquivos Metropolitanos de Londres [London Metropolitan Archives – LMA] pouco se parecem com o interior automatizado do Edifício Nacional de Jornais. Entretanto, eles se vangloriam de contar com quase 100 quilômetros de prateleiras e extensas áreas com históricos e tesouros da cidade enfiados em caixas feitas sob medida e à prova de ácidos, e depositados em salas cuidadosamente monitoradas. Entre eles está uma complexa pesquisa dos estados da Irlanda do Norte feita a pedido do rei Charles I – o chamado Grande Pergaminho da Honorável Sociedade da Irlanda, datado de 1639.
Seu nome pomposo desmente uma situação triste. Queimadas, amarrotadas e terrivelmente frágeis, cada uma de suas 165 páginas está retorcida como a carapaça de um caranguejo. “[As folhas] estão de tal maneira irreparáveis que já nem é pergaminho – é pura gelatina”, diz Caroline De Stefani, gerente de conservação dos LMA. Danificadas pelo grande incêndio de 1786, as preciosas páginas foram armazenadas durante séculos. “Embora esses documentos estejam tão danificados, a ideia é mantê-los, de qualquer maneira, e esperar que um dia se possa fazer alguma coisa com eles”, explica Philippa Smith, uma das principais responsáveis pelos arquivos dos LMA.
A tecnologia oferece vislumbres de esperança. Determinados a resgatar o conteúdo do Grande Pergaminho, pesquisadores da Universidade de Londres voltaram-se para a ciência de computação mais avançada e, em 2010, embarcaram num projeto de quatro anos para desenvolver um software que alise virtualmente as folhas amarrotadas e revele seu texto.
Fragmentos de papiro continham obras perdidas
Foi um esforço de equipe. Depois de desenvolver algumas técnicas com um modelo experimental, os responsáveis pela conservação dos LMA aumentaram, cuidadosamente, a umidade de cada página e suavizaram o material. As dobras ficaram parcialmente inchadas com o acolchoado e as folhas ficaram coladas com imãs à medida que secavam. Então, os pesquisadores da Universidade de Londres começaram a trabalhar. “Para cada folha, eles levaram uma porção de imagens diferentes e as costuraram juntas, numa espécie de modelo 3D”, explica Philippa Smith. “Depois, foi isso que eles manipularam para tentar alisar as folhas digitalmente.” À medida que os pergaminhos virtuais se desenrolavam, a teia de rabiscos tornou-se acessível pela primeira vez em mais de 200 anos.
“Isto é computação gráfica avançada”, disse a professora Melissa Terras quando alisamos uma página na tela em sua sala da Universidade de Londres. Diretora do Centro para Humanidades Digitais e co-supervisora, com o professor Tim Weyrich, do Projeto do Livro sobre o Grande Pergaminho, Melissa Terras acredita que a tecnologia pode fazer muito mais do que uma simples cópia dos registros físicos – pode revelar detalhes escondidos e permitir-nos acesso para nos maravilharmos com eles. “Nós usamos imagens computadorizadas para fazer coisas que não conseguíamos fazer antes”, diz ela. “Isso é um pouco simplista, mas é para tentarmos ler coisas que ficaram muito danificadas, ou para nos ajudar a apreender coisas que o olho humano não consegue ver.”
Estimulado pela queda de preços de computadores, do desenvolvimento de novas tecnologias e do aumento do acesso online, o campo das humanidades digitais está florescendo. E as tecnologias empregadas são cada vez mais sofisticadas – assim como os métodos de fotogrametria usados no projeto do Livro do Grande Pergaminho, Melissa Terras e seus colegas estão explorando o potencial de uma imensidão de técnicas, inclusive imagens multiespectrais (multispectral imaging – MSI). Tinta, marcas de lápis e papel refletem, absorvem ou emitem ondas de comprimento de luz específicas, do infravermelho, no final do espectro eletromagnético, através da região visível, e ao ultravioleta. Ao tirar fotografias usando fontes de luz e filtros diferentes, é possível criar uma série de imagens. “Voltamos para este montão de cerca de 40 imagens [do documento] e depois podemos usar o processamento de imagens para tentar ver o que está ali [em algumas delas], e não em outras”, explica Melissa Terras.
A partir do mês de setembro, Melissa Terras irá liderar um projeto para aplicar imagens multiespectrais (MSI) e outras técnicas às máscaras das múmias egípcias, para ver se o papiro reutilizado de que elas foram feitas contém escritos do passado. “As pessoas estão dissecando múmias tentando conseguir resíduos de papiro, pois fragmentos de papiro descobertos recentemente continham obras perdidas, como poemas de Safo e de Íbico, assim como peças de Ésquilo”, diz Melissa Terras. Ela espera que a tecnologia possa fornecer uma abordagem menos destrutiva. “Potencialmente, você poderia encontrar aqui grandes obras da antiga literatura.”
O rebaixamento das informações
Mas há obstáculos que têm que ser negociados. Enquanto técnicas como a das imagens por ressonância Magnética (MRI), dos raios X fluorescentes ou do MSI estão bem estabelecidas em laboratórios, os pesquisadores precisam descobrir como obter o melhor da tecnologia quando ela é aplicada a manuscritos, imagens e coisas manufaturadas.
“No momento, trata-se de ficar atrás da câmera e ver o que puder ver”, diz Melissa Terras. “Precisamos compreender os efeitos que isto tem nos materiais manuscritos, mas também compreender os fundamentos matemáticos.” O processamento também precisa de um exame profundo. “Temos que ser capazes de confiar na maneira como são criados esses modelos, esses substitutos, senão estaremos baseando nossa compreensão da história em algo que foi criado por computadores.”
Entretanto, Melissa Terras confia que, à medida que o campo amadurece, novas percepções serão reveladas pelo MSI e outras técnicas. “A história é uma história de perdas, mas também de descobertas”, diz ela. “Enquanto tivermos um vestígio físico que não consigamos ler, existe uma técnica possível de tentar desbloquear aquilo que se perdeu.”
Há muito trabalho a ser feito. Um estudo feito em 2014 revelou que, em média, apenas 17% das coleções em instituições patrimoniais foram, de alguma forma, digitadas na Europa. Mas se a digitação oferece novas oportunidades, também fornece dores de cabeça. “As bibliotecas, os arquivos e os museus não têm a capacidade de se ocuparem das informações digitais no longo prazo”, diz Melissa Terras. E com padrões para a documentação, para o arquivo e para o acesso às informações – tanto oficiais quanto pessoais – ainda sendo discutidos, a preocupação dela é de que poderíamos estar criado uma bomba-relógio. “Existe um enorme perigo de que os futuros historiadores venham a gastar uma imensa quantidade de tempo tentando armar algo que simplesmente não existe.”
Isso é um dilema do qual a equipe da Biblioteca Britânica está muito consciente. Desde 2004, vem se arrastando pela internet para arquivar websites vinculados à cultura britânica em seu Sistema de Biblioteca Digital junto com os jornais digitados e outros conteúdos. E, como me disse Alasdair Bruce, a garantia do armazenamento e acesso ao sistema no futuro tem sido o mais importante, com o próprio rebaixamento das informações também sendo profundamente examinado. “Tudo isso nos leva ao desafio que temos como uma organização com uma parte desse material”, diz ele, enquanto olhamos para o Edifício Nacional de Jornais. “é para sempre.”
***
Nicola Davis, do Guardian