Não existe um manual que ensine como se faz jornalismo investigativo. A tecnologia da investigação jornalística é um saber que vai se desenvolvendo entre os repórteres durante o trabalho e vai sendo compartilhado entre eles nas redações e principalmente nas mesas dos botecos. O que sabemos ao certo é que não podemos desrespeitar a lei que protege a intimidade do investigado. A polícia tem o poder constitucional de fazer isso, obtendo, na Justiça, mandados de busca e apreensão e de escutas telefônicas. Nós podemos conseguir as mesmas informações por outros caminhos. Só que o trabalho é maior e exige uma grande dose de paciência e conhecimento do terreno em que estamos pisando. Esse nariz de cera que escrevi é uma conversa que uso nas minhas palestras para colegas pelas redações do interior do Brasil e estudantes de jornalismo e que me veio à lembrança devido a um episódio que aconteceu no segundo sábado de maio (15/05) nas ruas de Porto Alegre (RS). João Carlos Franco Cunha, o Jonca, 72 anos, foi morto por um pistoleiro que disparou dois tiros quando ele estava numa camioneta Pajero parada na sinaleira da Avenida Princesa Isabel, próximo ao Bingo Roma, no bairro Azenha, nas imediações do centro da cidade. Eu fui o primeiro a colocar o Jonca no gibi — linguagem usada pelos velhos repórteres para dizer que colocou o personagem nas páginas do jornal.
Conheci o Jonca no final de 1992, na época um homem influente, com o poder de vida e morte sobre os seus adversários nos negócios. Ele fazia parte do grupo de 13 banqueiros do jogo do bicho que dominavam os 22 mil pontos de apostas espalhados por Porto Alegre. Eles se dividiam em três grupos: Periquito da Sorte, de Miguel Luiz Mucilo, Ferradura, de Rubens Hoffmeister, e a Associação dos Bicheiros de Porto Alegre, que era formada por 11 bicheiros, entre eles o Jonca, e que dominavam 70% dos pontos de apostas da cidade. No final de 1992 eu tinha sido liberado pela direção da redação do jornal Zero Hora para trabalhar “full time” em uma matéria sobre os banqueiros do jogo do bicho no Rio Grande do Sul. Na época, os aparelhos de celulares eram escassos e caros, a internet ainda muito limitada e sites de transparência não existiam. As investigações policiais sobre o jogo do bicho não eram feitas porque boa parte da Polícia Civil estava na folha de pagamento dos bicheiros e, além disso, quem abrisse a boca seria morto. Ou seja: eu estava em um mato sem cachorro, dito popular para dizer que a pessoa está perdida.
Mais de mil vezes me amaldiçoei por ter tido a ideia da reportagem e ter conseguido convencer a direção da redação que era possível fazê-la. Mas consegui concluí-la e vou fazer o making of da matéria O Poder dos Bicheiros Gaúchos, uma série de quatro reportagens publicadas durante quatro dias em ZH, em 1993. No próximo dia 2 de junho completam-se 28 anos da reportagem. Como consegui fazer? Resolvendo um problema de cada vez. O primeiro problema se tornou uma solução. Qual era ele? Todo mundo sabia que os donos de bancas do bicho faturavam milhões diariamente e que eram responsáveis por uma boa parte da corrupção na Polícia Civil. A tal ponto que em muitas delegacias o bicheiro mandava mais que o delegado. Ninguém me falou isso, eu vi. Se todo mundo sabia como o esquema funcionava, bastava ter um pouco de sorte e encontrar as pessoas certas para me contar quem era quem e como tudo funcionava. Comecei na base da pirâmide: os pontos de apostas. Geralmente chegava para fazer a minha aposta em um horário morto para conseguir “jogar conversa fora com o anotador do jogo”. Levei uns 40 dias para mapear toda a cidade e saber como os bicheiros haviam dividido Porto Alegre. Nunca repeti o mesmo lugar de aposta. Por quê? A maioria deles tinha policiais aposentados trabalhando de segurança. E aprendi com um colega de redação que se tu entrares em um lugar pela primeira vez e jogar conversa fora e voltar lá novamente e continuar puxando assunto, automaticamente entrará no radar do segurança, principalmente se ele for policial aposentado.
O que mais o pessoal dos pontos de aposta temia era a guerra pelo território entre os bicheiros. Por quê? O vencedor se tornava dono dos pontos e as comissões pagas ao anotador eram renegociadas, muitas vezes com a boca do cano de um revólver. Essas guerras eram notícias de pé de página nos jornais, por mais sangrentas que fossem. No final de 1992, eu acabei no meio de um churrasco de confraternização entre um grupo que atuava em 10 pontos de apostas. Sumi quando chegou o bicheiro, porque ele veio acompanhado pelos seus seguranças e um deles me conhecia por ser plantonista em uma delegacia. Muitas vezes, durante os meus plantões na ZH, liguei para ele ou fui até a delegacia para fazer matéria. Fui fundamental para o sucesso da reportagem ter começando a investigação pela base da pirâmide. O conhecimento que adquiri facilitou os meus próximos passos.
Eu já sabia. O pilar principal do jogo do bicho era a confiança do apostador de saber que quem ganha, leva. Até os anos 90 havia apenas uma rodada de apostas do jogo do bicho por dia, que era conferido pelos resultados da Loteria Federal. Foi quando os bicheiros inventaram as suas próprias loterias, que corriam duas e até quatro vezes por dia. No Rio Grande do Sul existiam três loterias. A mais popular era a Loteria da Sorte, da Associação dos Bicheiros. Meu problema: tinha que assistir a um sorteio para poder ver se era confiável. Conheci um colega que trabalhava em uma rádio e vivia elogiando a honradez dos bicheiros. Liguei para ele e disse que estava desconfiado que as loterias das bancas do bicho estavam sacaneado os apostadores. Levamos um mês conversando. No final acabei assistindo a um sorteio. Claro, a operação não era fiscalizada, portanto chamei de clandestina. Mais ainda: os banqueiros tinham um sistema interno entre eles que garantia o pagamento das apostas e que também proibiam os pontos de apostas de aceitarem jogos em números que havia ganho popularidade, como por exemplo de um prédio, ônibus ou voo de um avião que havia virado notícia nacional.
No início de abril de 1993, eu já havia feito o tema de casa: sabia quem era quem e como tudo funcionava na Região Metropolitana de Porto Alegre, na Serra (Caxias do Sul e cidades ao redor) e no Vale dos Sinos (Novo Hamburgo e São Leopoldo). Entre os banqueiros do bicho selecionei um grupo de 10 pessoas que considerei representativas levando em conta as suas posses e as ligações políticas e com a Polícia Civil. Nessa fase da matéria foi importante uma descoberta que fiz: um grupo de policiais — delegados, inspetores e escrivães — que havia se organizado para fazer frente ao poder dos bicheiros nas delegacias. Já sabia a rotina dos bicheiros que escolhi para entrevistar porque os havia seguido pelas cidades onde moravam e tive o cuidado de recolher o lixo da casa deles em busca de contas telefônicas, recibos e outras coisas que poderiam ser úteis para a minha apuração. Lembro de duas coisas nessa fase da matéria. Ao sentar na frente de um deles e explicar-lhe toda a sua operação, tive como resposta: “Tu me pegou”. A um outro que eu sabia ter sido sacaneado pelos concorrentes ofereci a chance dele ir a forra. Aceitou e me deu informações importantes. No meio do mês de maio de 1993 eu fazia as verificações finais das minhas anotações e gravações antes de sentar para bater a matéria. Vejam bem: a reportagem colocaria o dedo na cara de pessoas respeitadas na sociedade que durante o dia eram pais que levavam os filhos na igreja e na escola e à noite eram gângsteres que mandavam matar e abusavam da boa-fé das pessoas para furtar o seu dinheiro. Não havia dossiês, inquéritos policiais e muito menos processos na Justiça. Era eu quem estava dizendo que era assim porque vi acontecer. Portanto, era preciso ter certeza do que colocaria no papel. Até que na manhã do dia 21 de maio de 1993 aconteceu um episódio em que quase dei um tiro na cabeça, por ser o pesadelo de todo repórter: ser atropelado pelos fatos.
No caso, fui atropelado por uma carreta carregada de tijolos maciços. A juíza Denise Frossard, no Rio de Janeiro, deu voz de prisão para 14 banqueiros do jogo do bicho, entre eles Castor de Andrade, que haviam ido ao tribunal ouvir a sentença de um processo. Foi um reboliço nacional. Alguém, que não lembro o nome, chegou perto da minha mesa na redação e disse as palavras que eu não queria ouvir: “A tua matéria sai amanhã”. Fomos terminar a discussão no banheiro. O meu argumento era que a reportagem era exclusiva e nunca ninguém tinha publicado um quadro tão completo sobre o poder do jogo do bicho no Estado. A primeira matéria da série saiu no dia 2 de junho de 1993. Deu um baita rolo e uma enorme suíte – para quem não é jornalista, trata-se de matérias complementares. O meu colega Humberto Trezzi me ajudou. Um mês depois encontrei a juíza Frossard em um evento em Santana do Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Fiz uma longa e detalhada entrevista com a juíza. Fui para o hotel e tomei duas garrafas de vinho uruguaio e apaguei. Dormi o sono dos justos. Em 2012, publiquei em parceria com o repórter Carlos Etchichury a reportagem A Reinvenção do Jogo do Bicho. Mas isso é outra história que vou contar depois. Para fechar a conversa. Os banqueiros do jogo do bicho não costumam morrer de morte natural. Jonca sabia disso. E lembro uma frase que o Trezzi me disse uma vez e sempre repete: “Não existe jornalismo investigativo. Toda a matéria é investigativa”. Ele tem razão. O leitor merece o melhor que podemos dar, seja em um texto de cinco linhas ou em uma longa matéria.
Texto publicado originalmente no blog Histórias Mal Contadas.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.