Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Don Julio, mestre dos mestres

Enganam-se aqueles que dizem que Julio Scherer García foi uma referência na imprensa mexicana do último meio século ou mais. E igualmente erram os que afirmam que ele foi um professor formador de novas gerações de jornalistas no México. Estão errados porque ele foi muito mais do que isso: foi uma referência para várias gerações de jornalistas em toda a América Latina, e um exemplo de valor e dignidade.

Eu, por exemplo, sou brasileiro e tive em Julio Scherer, além de um amigo fraterno, uma referência ética e profissional em nosso tão maltratado ofício de escrever. E, apesar de o ter conhecido quando já estava há uns 10 anos trabalhando no jornalismo cotidiano, tive nele, e para sempre, além de um irmão, um professor permanente.

Todo latino-americano que acompanha o nosso ofício soube, de uma forma ou de outra, da batalha cotidiana de Julio na busca pela luz, pela verdade dos fatos, na busca pelo equilíbrio impossível entre o visto e o narrado. Uma batalha que manteve ao longo de toda a sua vida e que só chegou ao fim quando ele fez sua última viagem, a viagem sem regresso.

Nós nos conhecemos em agosto de 1975, quando ele dirigia o Excélsior, que na época era apenas o mais importante e ousado jornal mexicano, bem como de todo o continente latino-americano. Alguns meses depois, em junho ou julho de 1976, em Buenos Aires (sim, sim, eu poderia procurar a data exata; prefiro a que tenho na memória, consciente de que Julio jamais perdoaria essa falha), onde eu então vivia, pedi a um amigo em comum que perguntasse a Julio sobre a possibilidade de abrigar no Excélsior o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano, que estava a ponto de sair da Argentina do ditador Jorge Videla para não ser preso e morto. E a resposta me deixou perplexo: “Neste exato momento, começa uma assembleia para nos tirar do jornal. Uma violência de Echeverría. Ligue-me em uma semana e direi o que faremos”.

Referência ética

Não houve tempo: primeiro Galeano, e em seguida eu, nos instalamos na Espanha. Mas em poucos meses Julio me fez chegar a resposta: ele havia, juntamente com o grupo de companheiros expurgados do jornal, fundado a revista Proceso. E, onde ele estivesse, sempre haveria lugar para Galeano e para mim.

Em setembro de 1979, cheguei ao México. E em meados do ano seguinte, atendendo a um chamado de Julio, estreei uma coluna semanal na Proceso, sua nova trincheira de batalha. Por anos, continuei escrevendo para a revista, até que ele se aposentou. Daí me dei conta de que não escrevia na Proceso por razões profissionais: escrevia para que Julio me lesse.

Ao longo dos últimos dois ou três anos, nos vimos pouco ou nada. É que já não era necessário que nos víssemos para que ele soubesse da minha infinita admiração e de meu interminável agradecimento por tudo que fez por mim, principalmente no campo pessoal. Foi e continuará sendo um amigo presente nos momentos mais duros da vida. Sempre com um carinho enérgico, com a palavra precisa, com uma solidariedade do tamanho de seu gigantesco coração.

Não, não é verdade que o México e a imprensa mexicana tenham perdido uma referência ética, moral e profissional.

A vida a perdeu.

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Eric Nepomuceno é jornalista