Millôr, além de tudo o que criou, e criou de tudo, criou também um engano involuntário. A propósito dele mesmo, mas não o engano do nome. Milton de verdade, na certidão e por desejo paternal, Millôr por sargentada de um militar que cismou ser o t um segundo l e o traço do t um circunflexo no o: “É Millôr!” Miltinho até os 17 ou 18, Millôr para sempre.
O outro engano recaiu sobre nós. Acompanhou Millôr desde a primeira página do Pif-Paf no longínquo O Cruzeiro e agora se mostra com toda intensidade nos jornais, nas TVs, nas conversas sobre “o humorista Millôr”. Mas desengane-se: Millôr não era humorista. Millôr foi um pensador. Brilhante e fertilíssimo pensador. Ilimitado nos temas e incessante no seu exercício de pensador.
O humor foi uma linguagem para o pensador. Uma das linguagens. Como a palavra, escrita ou vocalizada. Como o traço e as cores no desenho e na pintura, de uma riqueza de sentidos só comparável à preciosidade da criação estética. Como a elaboração cênica e verbal do autor de teatro. O humor foi a mais presente e perceptível linguagem de Millôr, mas linguagem do pensador.
Cada sentença e cada texto, cada pintura e cada peça, cada conversa de Millôr conteve, sempre, um significado ético, ou humanístico, ou crítico, e mais, mais – sempre o significado adicional, além do visível e do audível. E, no final, ali estava a razão de ser do escrito, do desenhado, do dito. E nada construído: nascido, simplesmente.
“Tive a sorte de conhecer um gênio”
Pensador de hábitos inesperados. Quando Paulo Mendes Campos, Marco Aurélio Mattos e eu, o caçula aceito, chegávamos de manhã à praia, já Millôr havia feito ginástica em uma academia precursora e repetido corridas na areia. Encontros por anos e anos, cujas conversas não terminaram ainda: percorrem com frequência minha cabeça, em pedaços que esperavam continuação ou que são inesquecíveis. Eram três intelectuais gigantescos, a me injetar, sem querer, perplexidades e curiosidades, um dia porque alguém decidira ler Humboldt, no outro porque alguém descobrira uma sutileza ainda impercebida em certa passagem de Shakespeare, ou um pintor, um livro, muitos livros – tudo terminava em livros.
O último de nossos almoços regulares, que desde as dificuldades físicas de Millôr estavam transferidos para o seu estúdio, foi também o último seu com amigos. Naquele dia, ainda Luis Gravatá e Cora Rónai. Foi suave, mais longo do que o habitual por insistência do Millôr. No dia seguinte, de repente, Millôr iniciou longo período de vida quase toda em ausências.
Quando dirigiu a Casa Laura Alvim, Eliana Caruso fez uma edição fac similar da revista Pif-Paf, que Millôr lançou depois de deixar O Cruzeiro. Tiveram comigo a gentileza de me entregar o texto de apresentação. Terminei-o com uma frase mais ou menos assim: “Tive a sorte de conhecer um gênio”.
Mais do que conhecer, a sorte me permitiu o convívio. Foi uma amizade de quase 60 anos, sem baixios, com intimidade bastante para as confidências nas aflições e em coisas pessoais, para solidariedade e confiança.
Minha gratidão, meu amigo Millôr.
***
[Janio de Freitas é jornalista]