Ray Bradbury, um dos principais autores de ficção científica por mais de 60 anos, morreu na quarta-feira (6/6), aos 91 anos de idade. Embora tenha escrito muitos livros e contos que tiveram boa receptividade – e, em muitos casos, transformados em filmes, peças de teatro ou vídeos de TV –, provavelmente ele era mais conhecido por Fahrenheit 451, sobre um futuro imaginário de pressão e terror, no qual o governo queima livros. Normalmente, o texto é considerado um protesto contra a censura, mas Bradbury disse que seu objetivo era chamar a atenção para a forma pela qual a televisão, assim como outros tipos de mídia, fazia com que as pessoas se interessassem cada vez menos pelo mundo das ideias. Uma vez que estamos cada vez mais cercados por mais meios de comunicação e conteúdo de entretenimento, o que pensaria Bradbury do mundo em que vivemos?
No livro (que Bradbury escreveu na biblioteca da Universidade de Los Angeles, numa máquina datilográfica que alugava por hora), o protagonista Guy Montag é um bombeiro [aqui, há um trocadilho com a palavra inglesa fireman, que significa bombeiro, mas, ao pé da letra é “homem de fogo”] que queima coisas, inclusive livros, ao invés de apagar incêndios. No futuro imaginado por Bradbury, as vidas das pessoas são controladas pela televisão que, para a maioria das pessoas, significa telas múltiplas do tamanho de muros que transmitem espetáculos triviais, maçantes e embrutecedores com os quais os cidadãos do futuro ficam obcecados. A mulher de Montag é uma dessas pessoas e, à medida que ele vai se afastando dela, fica fascinado pelos livros que estaria queimando. O livro termina (alerta total) com uma guerra nuclear que, aparentemente, destrói quase toda a civilização.
Oefeito soporífero da televisão
Embora, em Fahrenheit 451, os livros sejam ilegais, Bradbury disse, em entrevistas, que seu principal objetivo não era denunciar a censura (embora esta seja claramente um subtema), e sim, tentar apresentar um quadro mostrando para onde a sociedade poderia estar se dirigindo, à medida que os livros e outras formas de comunicação e entretenimento vinham sendo substituídos pelo que ele considerava alternativas vazias e frívolas, como os espetáculos de televisão. Nesse futuro, Bradbury asseverava que os livros se tornariam ilegais porque as próprias pessoas se tornariam cada vez mais anti-intelectuais e os considerariam suspeitos. Nada de surpreendente, talvez, no fato de ele não ser adepto de livros eletrônicos.
Isso não são livros. Você não pode segurar um computador na mão, como você faz com um livro. Computadores não cheiram… Um livro tem que ter um cheiro. Você tem que segurá-lo na mão e rezar para ele. Você o põe no bolso e sai caminhando com ele. E ele fica com você para sempre. Desculpem-me, mas o computador não faz isso por você.
Bradbury também reagiu com veemência quando o Yahoo quis publicar um livro seu online: “Sabe o que é que eu lhes disse? ‘Vão pro inferno. Vão pro inferno vocês e a internet. Ela desconcentra’.” De muitas maneiras, as opiniões de Bradbury sobre a televisão e o emburrecimento da cultura eram semelhantes àquelas levantadas pelo escritor Neil Postman, em 1985, em seu livro Amusing Ourselves to Death, que teve como inspiração Brave New World, de Aldous Huxley, e era sobre o efeito soporífero da televisão e seu impacto sobre a sociedade. Não é muito claro o que Bradbury pensava (ou se pensava) sobre a internet e a ascensão das redes sociais, mas é razoável pensar que as consideraria apenas como parte de um mesmo padrão: entretenimento vazio que só serve para desconcentrar as pessoas da busca pelo verdadeiro conhecimento.
Imagens e vídeos de uma guerra
E Bradbury não estava sozinho: nos últimos anos, outros escritores usaram o mesmo tipo de argumentação sobre os perigos da internet e das redes sociais. O livro The Shallows, de Nick Carr, tenta mostrar como a internet e suas contínuas distrações não só nos fazem perder o interesse sobre pensamentos profundos, mas, na realidade, alteram o nosso cérebro de forma a que isso se torne permanente. E ainda mais recentemente, o livro Digital Vertigo, de Andrew Keen, tem como alvo as redes sociais e os efeitos vazios e desconcentradores que elas têm sobre a sociedade.
Munição é o que não falta para este tipo de críticas – do tipo de distração encontrada em sites como Buzzfeed e das horas desperdiçadas no Facebook com jogos como Farmville, ao entretenimento vazio oferecido por sites como Perez Hilton ou 4chan, ou ainda aos boatos e trotes que prevalecem em redes como o Twitter. Mas será que tudo isso significa que a sociedade está se tornando anti-intelectual a ponto de as pessoas preferirem se divertir a ler um livro ou refletir sobre coisas profundas? Não estou plenamente convencido.
Uma das coisas que Bradbury não previu – por maior que fosse sua visão do futuro – foi como boa parte da mídia que consumimos foi criada por nós, e não por alguma corporação midiática sem rosto que tivesse como objetivo servir-nos baboseiras mentais ou garantindo-nos um falso sentimento de segurança. A parte social e criada por usuários das redes sociais é a que a transforma em algo verdadeiramente mágico, tal como correu na Praça Tahrir, quando as pessoas ali se encontravam, assim como em outros lugares, arriscaram suas vidas para nos mostrar imagens e vídeos de uma guerra – e, assim, ajudando-nos a trazê-la mais perto do que qualquer outro tipo de noticiário faria.
O benefício social de propostas artísticas
Isso não significa que não haja ali uma porção de bobagens, ou que o entretenimento vazio e as distrações criadas pelo YouTube ou pelos usuários do site 4chan sejam mais edificantes ou compensatórias do que uma comédia besta na televisão, pois não são. Mas as ferramentas de que dispomos agora são capazes de muito mais e há muitas pessoas que as usam para esses fins – e os potenciais benefícios disso são quase ilimitados. O futuro imaginário de pressão e terror de Bradbury serve como um alerta útil sobre os perigos de nos divertirmos até a estupidificação, mas ainda há uma esperança.
Em 1969, o escritor Neil Gaiman escreveu um maravilhoso tributo a Bradbury, que vale a pena ler – encravado, em baixo, há um vídeo-clip do autor em 1969 –, descrevendo o que ele considera o benefício social de propostas artísticas, como escrever livros.
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[Mathew Ingram, do Washington Post]