Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ivan, 77

“Eu prefiro ler a escrever!” é uma das frases de Ivan Lessa que ficaram famosas. Apesar da afirmação, ele escreveu até o último dia de vida.

O jornalista e escritor brasileiro radicado em Londres desde 1978 morreu em sua casa na tarde de sexta-feira, aos 77 anos, em decorrência de enfisema pulmonar e problemas cardíacos.

De acordo com Elizabeth Lessa, 73, sua viúva, Ivan estava em tratamento havia quase um ano e ficava dentro de casa praticamente o dia inteiro, escrevendo.

Segundo Elizabeth, casada há 39 anos com o escritor, seu corpo será cremado em uma cerimônia em Londres, como ele desejava. A data ainda não foi definida.

Lessa também deixou a filha única Juliana, que tinha dois anos quando a família se mudou para Londres.

Mesmo debilitado, o jornalista continuava publicando suas colunas no site da BBC Brasil três vezes por semana.

Na última delas, que saiu na manhã de sexta-feira, ele chamava de mestre o também escritor Millôr Fernandes, morto em março deste ano, e enumerava uma série de frases brincando com a ideia da morte (leia à esq.).

Entre elas estavam: “Na verdade, nunca me senti à vontade nessa posição incômoda de cidadão do mundo” e “só quero ver quanta gente vai sincera no meu funeral”.

Lessa carregava uma forte herança literária. Filho do também escritor Orígenes Lessa e da jornalista Elsie Lessa, era bisneto de Julio Cézar Ribeiro Vaughan, criador de jornais e autor do romance naturalista “A Carne”.

Lessa foi fundador e um dos principais colaboradores do jornal “O Pasquim”, durante a resistência à ditadura militar brasileira [1964-1985], ao lado de Ziraldo, Paulo Francis, Tarso de Castro e Millôr Fernandes.

Com o cartunista e amigo Jaguar, Lessa criou o ratinho Sig, inspirado no psicanalista Sigmund Freud, que se tornou símbolo de “O Pasquim”.

O jornalista publicou três livros de contos e crônicas, “Garotos da Fuzarca”, “Ivan Vê o Mundo” e “O Luar e a Rainha”, e participou do livro “Eles Foram para Petrópolis”, de 2009, compilação da sua troca de correspondência por e-mail com o amigo e jornalista Mario Sergio Conti.

Ele também trabalhou na TV Globo e colaborou para várias publicações brasileiras, entre elas a Folha, as revistas Senhor, IstoÉ, Veja e Playboy, e os diários O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil.

Em dezembro de 2011, Lessa publicou no site da BBC uma crônica intitulada “Morrer por cremação é joia”.

Nela, afirmava: “Volto à morte como ela, delicada, se volta para mim. Todo dia, disse e repito, tem alguém conhecido que nos (dou uma chegada ao Brasil pelas asas da Panair) deixou. Leio o pouco que entendemos da difícil arte do obituário, na qual os britânicos ainda detêm medalha de ouro, e, na companhia fiel de meu enfisema, constatamos. Só isso. Constatamos. Não há mais motivo para verter lágrimas.”

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Colegas relembram sarcasmo e capricho

Amigos e colegas de profissão apontam o humor cáustico e a escrita esmerada como dois dos traços definidores da carreira de Ivan Lessa.

“Foi uma das pessoas mais engraçadas, debochadas e inteligentes que já conheci. Ele era muito inventivo. Tinha uma maneira bastante peculiar de ver as coisas”, diz o escritor e jornalista Sérgio Augusto, que conviveu com Lessa por seis anos na Redação de “O Pasquim”.

“No fim dos anos 1970, ilustrei e diagramei a coluna dele no 'Pasquim', 'Gip! Gip! Nheco! Nheco!', durante um tempo. Ele fazia um humor politicamente incorreto antes mesmo de existir esse termo, da mítica que se criou em torno do conceito. Era o meu mestre Jedi, ao lado do Millôr [Fernandes, morto em março passado]”, afirma Hubert, do Casseta & Planeta.

Outro “casseta”, Reinaldo, também guarda lembranças dos tempos de “O Pasquim”:

“Lá, ele respondia a leitores falsos e verdadeiros, fazia fotonovelas, histórias em quadrinhos, os aforismos do 'Gip! Gip!'. Cheguei a ilustrar alguns artigos dele. Me lembro que o Ivan iniciou um romance sobre a Rádio Nacional da década de 1950. Escreveu alguns capítulos, mas não prosseguiu. Ele gostava de cultivar o texto”.

Tradutor severo

O jornalista Carlos Leonam recorda o estilo sem papas na língua de Lessa. “Conheci o Ivan no início dos anos 1960, quando eu era diretor da [editora] Nova Fronteira, e ele trabalhava na função de tradutor”, conta.

“Lembro que lhe pedi para revisar uma tradução de 'Os Canhões de Navarone' [de Alistair MacLean]. No dia seguinte, ele entrou no meu escritório e disse: 'Seu tradutor chamou 'yellow bastard' [expressão equivalente a covarde] de bastardo amarelo. Não vou revisar essa porcaria'.”

O escritor e colunista da FolhaCarlos Heitor Cony é outro a destacar a faceta de tradutor de Lessa. “Fiquei admirado. Traduziu 'A Sangue Frio' [de Truman Capote] em tempo recorde: o livro saiu aqui em 1966, pouco depois de ser publicado nos Estados Unidos.”

O apresentador e humorista Jô Soares rememora um episódio prosaico ligado ao jornalista.

“Conheci minha primeira mulher indiretamente por causa dele. Em 1959, tínhamos combinado que ele passaria na minha casa, no Rio, para irmos a um Fluminense x Botafogo. Ele simplesmente não apareceu. Como eu não tinha dinheiro para outro lazer, fui ao teatro, onde conseguiria entrar de graça porque já conhecia algumas pessoas. Lá, encontrei aquela que viria a ser minha mulher.”