“Morreu enquanto dormia a sesta. Nem tomou conhecimento.” Assim José contou como foi a morte de seu pai, Santiago Carrillo. Terá sido, talvez, a única vez em que ele não tomou conhecimento de alguma coisa em seus 97 anos de vida.
Militante de esquerda desde a juventude, foi secretário-geral do Partido Comunista Espanhol entre 1960 e 1982. Coube a ele substituir no cargo outra figura mítica, Dolores Ibárrui, La Pasionaria. Acima de tudo, porém, Carrillo foi fundamental na transição espanhola entre o franquismo herdado por Adolfo Suárez e a democracia que o país vive até hoje. Não apenas essa democracia deve muito a ele: a própria monarquia, pilar chave da Espanha pós franquista, tem uma dívida impagável com esse republicano convicto.
Adolfo Suárez teve o valor, a sabedoria, a habilidade e a grandeza de sair do franquismo mais retrógrado e assumir a difícil, quase impossível tarefa de conduzir a Espanha à democracia. Mas é impossível negar que todo esse processo de transição teria sido muito mais difícil, e resultaria cambaio, se não fosse a capacidade negociadora de Carrillo e sua liderança na esquerda espanhola.
Campo de prisioneiros
Besta negra do regime franquista, cujos herdeiros lutavam para se perpetuar no controle do país, Carrillo teve papel vital nas negociações que levaram à legalização das centrais sindicais, na anistia política, no acordo de reconciliação, na legalização dos partidos de esquerda e, finalmente, na convocação de eleições constituintes que resultaram no fim formal da ditadura e na inauguração da democracia. Além disso, e junto a outros dois dirigentes, o italiano Enrico Berlinguer e o francês Georges Marchais, Carrillo foi um dos sustentáculos do eurocomunismo, que nos anos 1970 e 80 se propunha a ser uma via alternativa entre a socialdemocracia e a velha ortodoxia defendida por Moscou.
A independência, a partir de uma certa época, diante do dogmatismo soviético foi uma mostra clara e consistente da certeza de Carrillo: ou o comunismo se arejava, se adaptava a um mundo que mudava de maneira veloz, ou feneceria.
O tempo e as circunstâncias confirmaram que ele estava certo. Afastado do Partido Comunista Espanhol em 1985, assistiu à derrubada de tudo aquilo que, décadas antes, havia previsto estar condenado às sombras do passado.
Ao longo de quase um século Santiago Carrillo foi, mais do que testemunha, um participante ativo da história da Espanha e da Europa. Foi, até o fim, um observador rigoroso e crítico de todo o processo político que agora atinge um nível de degradação que ele – e os espanhóis – certamente preferia não ter visto.
De seus quase cem anos de vida, passou 38 no exílio, de fevereiro de 1939 a dezembro de 1976. Sua primeira filha morreu na primeira infância, em consequência das sequelas dos meses que passou num campo de prisioneiros das tropas franquistas, durante a Guerra Civil que durou de 1936 a 1939 e mergulhou de vez a Espanha num mar de trevas.
Imagem definitiva
Lembro bem que quando me mudei para Madri, em setembro de 1976, a esquerda em geral e o Partido Comunista em particular eram mais do que malditos naquela cidade franquista, naquele país controlado pelos herdeiros de Francisco Franco, morto em novembro de 1975 mas cuja alma em pena continuava açoitando o país.
Pouco depois da minha chegada entrei em contato com um dirigente histórico do PCE, Simón Sánchez Montero, alfaiate de profissão, militante em tempo integral, combatente da liberdade. Quando ele me passou o endereço para nosso encontro – Sánchez Montero era procuradíssimo pela polícia, pelos serviços de informação, pelos esbirros da falange franquista – me surpreendi: rua dos Perigos, número 8. E pressenti que os comunistas espanhóis eram, sim, diferentes. Ninguém escolheria um endereço daqueles para reuniões clandestinas.
Pedi a Sánchez Montero um encontro com Carrillo. Sabia eu, e sabia todo mundo em Madri, que ele estava na cidade. Sánchez Montero – com quem continuei me encontrando durante anos e anos – riu e me disse que não sabia do que eu estava falando. Passaram-se uma poucas semanas e no dia 22 de dezembro de 1976 Santiago Carrillo foi preso na rua, ostentando uma vistosíssima peruca ruiva. E eu soube então, por Sánchez Montero, que na mesma tarde e horas depois daquele nosso encontro na rua dos Perigos, número 8, Carrillo havia tido, lá, uma longa reunião. E que havia sido discutida, entre outras questões, a melhor maneira de se fazer prender (a tal peruca, ridícula e chamativa, que ele mesmo fez questão de escolher) e precipitar as negociações que, em poucos meses, levaria à consolidação do processo de transição entre franquismo e democracia na Espanha.
Foi uma trajetória impar, que em grande parte reflete o processo das esquerdas europeias ao longo do século passado. A primeira imagem da qual havia guardado lembrança era a de seu pai, Wenceslao Carrillo, dirigente sindical da União Geral dos Trabalhadores e do PSOE, o Partido Socialista Operário Espanhol, atrás das barras de ferro de uma cela de prisão, em 1917, quando tinha pouco mais de dois anos. Uma imagem vaga, nebulosa, mas definitiva. Aos 17 militava na juventude socialista.
Personagem único
Dizia que o PSOE seria o partido da revolução. Em 1934, participou de uma tentativa de golpe contra o governo republicano de direita. Foi sua estreia na prisão, onde passou um ano e meio. No final de 1936, depois de uma temporada em Moscou e quando a Guerra Civil desatada por Franco já tinha começado, Carrillo abandonou o PSOE e entrou no Partido Comunista Espanhol, onde permaneceria até ser afastado, em 1985.
Nesse meio tempo viveu, a exemplo de quase todos os comunistas de sua geração, uma juventude bolchevique, uma primeira maturidade stalinista, para depois se assumir um arquiteto de pactos. Na primeira metade dos anos 70, tornou-se um negociador mais hábil e de espírito bastante mais aplacado. Passou a defender uma ruptura democrática, baseada em pactos políticos, que, no final, foi a base da transição capitaneada por Adolfo Suárez.
Em 1982, com a vitória de Felipe González devolvendo após meio século o poder aos socialistas, Carrillo pareceu entender que sua hora havia passado, e deixou a secretaria-geral do PCE.
Até hoje a Espanha sabe que, se não fosse por ele, a transição teria sido outra, mais deficiente, mais frágil, mais defeituosa.
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[Eric Nepomuceno é jornalista e escritor]