Ele não era um, era muitos. Conhecia e frequentava todos os festivais de leitão promovidos em cidades próximas a São Paulo. Conhecia e frequentava todas as bibliotecas, inclusive as que reuniam coleções particulares, não abertas ao público (pois ele, todos sabiam, detinha vastíssimos e profundos conhecimentos de literatura).
Adorava animais – chegou a ter 50 gatos em casa, mais alguns cães – e foi quem ofereceu a este colunista a magnífica vira-latas “Pantera”, cachorra notável, que morreu de velhice há mais de dez anos e ainda deixa saudades.
Adorava jornalismo: foi um dos expoentes do Jornal da Tarde, Veja, IstoÉ, O Estado de S.Paulo. Fundiu com brilho jornalismo e literatura, e por seu trabalho como crítico literário ganhou dois prêmios Jabuti.
Este era Geraldo Galvão Ferraz, o grande Kiko, que morreu no início deste carnaval, aos 72 anos. E havia ainda mais: Kiko era filho de Geraldo Ferraz, um esplêndido jornalista, de grande atuação política, e de Patrícia Galvão, a lendária Pagu, musa e participante dos movimentos literários modernistas, feminista muito antes que este termo existisse, militante comunista quando isso era crime – aliás, Pagu foi perseguida por tudo o que era e que fez, não apenas por sua posição política. Onde já se viu, naquela época, mulher de tanta iniciativa e opinião?
Boa prosa
Kiko buscou documentar ao máximo a memória dos pais. Descobriu escritos inéditos de Pagu, coordenou o portal www.pagu.com.br, coordenou o Centro de Estudos Pagu da Unisanta, Universidade Santa Cecília, de Santos. Santos, aliás, era sua segunda cidade: ali se desenvolveu boa parte da carreira jornalística de seu pai.
É difícil escrever sobre a morte de um grande amigo, um jornalista de vastíssima cultura que, entre leituras e pesquisas, conhecia todo o grande circuito de doceiras de São Paulo, e a ele nos conduzia nos momentos de lazer. Era com ele que se podia discutir literatura sem cair naquelas análises chatas, era com ele que se podia conversar sobre cinema sem entrar nos debates de discutível erudição. Era com ele que se podia conversar civilizadamente sobre o mundo, sem maniqueísmos, sem reducionismos.
Adeus, Kiko. Um a menos – no caso, muitos a menos.
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[Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados]