Dilma Rousseff antecipou o regresso ao Brasil, com Lula. Cristina Kirchner também voltou antes do previsto para a Argentina. Foram a Caracas participar do cerimonial fúnebre de Hugo Chávez marcado para ontem. Surpreenderam-se na tarde de quinta-feira com a decisão do “presidente encarregado” e candidato à sucessão, Nicolás Maduro, de estender a homenagem por mais uma semana.
O ritual em Caracas prossegue no compasso adequado à construção do mito. Uma das etapas da sacralização de Hugo Chávez foi sua “purificação” – a preparação do cadáver para resistir à corrupção biológica, processo que agentes funerários definem como “embalsamamento”. Depois, poderá ficar em exposição permanente no Panteão dos Heróis, ao lado de Simon Bolívar, o Libertador. Heróis e cemitérios fazem parte dessa paisagem cultural. Ela tem o toque trágico, inerente à cultura hispânica, que faz com que cada ato seja definido por sua carga intrínseca de pasión. Não há espaço para pragmatismo.
Embalsamado, sagrado mito, ele terá um grau de potência nunca vivida – o Sobrenatural Chávez, signo da pureza política. O cidadão Hugo Chávez Frías pode ter errado no exercício do poder político. Já o Sobrenatural Chávez nunca erra. Tem, inclusive, poder de zerar os erros cometidos pelo cidadão durante sua passagem em vida pelo Palácio de Miraflores, onde nomeou Maduro vice-presidente e o ungiu candidato à sucessão.
Os beneficiários do líder
Alheio às leis naturais, ele pode conduzir o candidato Maduro a um recorde de votos na próxima eleição. Ontem, havia quem apostasse em uma futura vitória governista com até 75% dos votos. Tudo é possível nesse cenário de realismo mágico. Chávez está em plena transição para a categoria de objeto de culto, onde se encontra Bolívar, o Libertador, a quem cultuava. Em vida, fez uma leitura peculiar do Bolívar histórico, com uma retórica de continuidade entre seu governo e as guerras de independência da Venezuela. Acrescentou uma novidade: o “socialismo bolivariano”, que pode ser qualquer coisa, inclusive nada, mas guarda o apelo da igualdade que embala a política desde a Revolução Francesa.
Fez isso durante passagem pelo Brasil, anotou o historiador Gilberto Maringoni no livro A Revolução Venezuelana. Foi em Porto Alegre, em janeiro de 2005, durante o V Fórum Social: “Nosso caminho é o socialismo”, disse, cuidando de marcar a “diferença” com similares naufragados: “Um socialismo com democracia e uma democracia com participação popular.”
Só construiu o pedaço do “popular”, fundado no culto à sua personalidade. Nisso não tem herdeiros. Quanto ao legado real – o país mais dividido, mais endividado e mais dependente do “Império” como nunca antes na História –, agora é problema dos que aspiram o poder como herança. No primeiro momento da era pós-Chávez, devem ser beneficiários da força do líder embalsamado. Com o tempo, volta-se à implacável vida real. Dela, Sobrenatural Chávez está livre.
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José Casado, do Globo