Com a morte do jornalista Ruy Mesquita morre um pouco da convicção severa, da clareza generosa, da indignação necessária, da coragem prudente, da inteligência que ilumina e jamais constrange o interlocutor. E como isso tudo faz falta a um Brasil que ainda confunde subserviência com consenso, covardia com lhaneza, pusilanimidade com pragmatismo. A perda é imensa!
Desde a adolescência sou frequentador assíduo da seção “Notas & Informações”, na página 3 do Estadão. Os editoriais longos, analíticos, polêmicos me introduziram no Brasil. Na maioria das vezes suas teses e abordagens me persuadiam, noutras me induziam a posições contrárias. Estas se avolumaram quando, na universidade, me tornei líder estudantil. Mas o hábito da leitura manteve-se, fosse pelo esforço de entender o pensamento dos que considerava, então, adversários políticos, fosse como estratégia de aprendizado.
Havia também as volumosas edições de domingo. Foi nelas que tomei conhecimento, por exemplo, de textos de Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Durante muitos anos Ruy Mesquita foi a encarnação desse espírito que privilegiava o debate, a pluralidade, o confronto de ideias, sem jamais abrir mão de deixar claros seus valores e princípios. Vi isso de perto quando, em 1962, organizaram um debate na Faculdade Sedes Sapientiae sobre a revolução cubana. Tratava-se de um reduto da Juventude Universitária Católica e, por consequência, da nascente Ação Popular. Quem era o expositor? Ruy Mesquita, da família que dirigia o Estadão. Fui um dos debatedores, em defesa da revolução cubana.
Comportamento memorável
Ruy, o primeiro brasileiro a entrevistar Fidel Castro e que apoiara, com seu jornal, o movimento que derrubara o ditador Fulgêncio Batista, tornara-se então crítico ferrenho do regime cubano, que suprimira a liberdade de imprensa, se declarara socialista e se tornara aliado da URSS. Tudo isso no contexto da guerra fria e do receio dos EUA de que irrompessem outras “Cubas” na América Latina. Basta lembrar que no ano anterior fora erguido o Muro de Berlim e pouco tempo depois daquele debate ocorreria a crise provocada pela instalação de mísseis soviéticos na ilha – um dos piores momentos da guerra fria, quando o mundo chegou mais próximo do confronto nuclear.
No debate, entre Ruy, o crítico claro e severo, e o pessoal do PCB, nosso aliado no movimento estudantil, que fazia uma defesa completa, minha tendência era a de uma terceira via. Passava por cima do endurecimento do regime e do seu deslocamento para a órbita soviética e atribuía aos EUA a responsabilidade pelo que tinha acontecido, dada a sua hostilidade às reformas promovidas pela revolução e seu envolvimento em atentados contra a vida de Fidel Castro e na frustrada invasão da Baía dos Porcos. O que me marcou foi a coragem do Ruy, isolado, sozinho, com sua inteligência, seu raciocínio claro e sua veemência, sem perder a educação e a paciência em nenhum momento.
A partir dali passei a admirá-lo. Sobre o tema, diga-se, o tempo deu mais razão a Ruy. Cuba segue sendo uma ditadura que mantém a imprensa sob censura, persegue os opositores do regime e prende pessoas por delito de opinião.
Poucos tempo depois, num programa ao vivo de TV, o debate se repetiu: Ruy e outros sentados diante das câmeras, um grupo de estudantes de pé, à esquerda da mesa. Ele falava do expansionismo soviético, da invasão da Hungria em 1956, do Muro de Berlim e do perigo de se converter a América Latina numa área de influência comunista. Na minha única vez de falar, lembro-me de ter argumentado que aquilo não tinha nada que ver com a fome, a pobreza, a mortalidade infantil, as desigualdades…
Já no exílio, que começou em 1964, não me surpreendeu o rompimento do Estadão com o regime militar, a partir do AI-2, em outubro de 1965, que suspendeu a Constituição de 1946, dissolveu os partidos, interveio no Judiciário e estabeleceu a eleição indireta de presidente e governadores. Afinal, o que era, aos olhos de alguns de seus idealizadores, para ter sido um regime de exceção, transitório, transformou-se numa ditadura, consolidada pelo AI-5, de dezembro de 1968. O comportamento do Estadão e do Jornal da Tarde em relação à censura e à repressão foi corajoso, memorável.
O tempo e a razão
Depois que voltei ao Brasil, no fim dos anos 1970, pedi a um amigo comum que me reapresentasse ao Ruy. Em dois ou três encontros, já avançando no governo Montoro, do qual me tornara secretário, ficaram claras algumas posições comuns sobre o passado. A ditadura não nascera de nenhuma necessidade histórica, do, digamos, “processo de acumulação de capital”, como rezavam supostos marxistas ortodoxos. Mas não há essa relação linear entre economia e regime político. Por trás e na frente dos problemas econômicos, a ponta do novelo da débâcle da democracia fora a renúncia estapafúrdia de Jânio Quadros, no sétimo mês de mandato na Presidência, numa tentativa canhestra de dar um golpe. João Goulart assumira em meio a uma crise institucional, dedicara-se por 16 meses a derrubar o parlamentarismo que lhe tinha sido imposto e, depois, não conseguiu formar um governo estável; a inflação anualizada disparou para os 100% – isso numa economia desindexada… A conjuntura e a contribuição milionária de todos os erros de indivíduos e de agentes políticos haviam feito a História, mais do que este ou aquele fatores determinantes. Concordávamos que os indivíduos costumam fazer, sim, a diferença.
Sempre lhe disse que seus editoriais faziam análises e considerações que aumentavam meu conhecimento da área ou me alertavam para problemas que eu não percebera. Contei-lhe também, na última vez que o visitei, no início de março, que concordara com um amigo inteligente e insuspeito quando me disse que, afinal, o Ruy era um vitorioso no plano das ideias sobre o Brasil e o mundo. O tempo deu-lhe razão. Perdemos uma dessas pessoas raras, que surgem só de tempos em tempos, capazes de contar a História do futuro.
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José Serra é ex-governador e ex-prefeito de São Paulo