O jornalista Ruy Mesquita, diretor do jornal O Estado de S. Paulo morreu ontem [terça-feira, 21/5], aos 88 anos. Havia sido internado no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Um câncer de base de língua havia sido diagnosticado em abril. Foi o último sobrevivente da terceira geração da família Mesquita, proprietária do jornal há mais de cem anos. Ele tinha consciência de que, possivelmente, fosse também o último membro da família a assumir sua direção. Trabalhou até o fim. Dizia que “agora não tenho como me aposentar, porque sou o último Mesquita aqui dentro”.
Antes de dirigir o Estado, o “dr. Ruy”, como era conhecido, foi o fundador do Jornal da Tarde, lançado em 1966, uma publicação que rompeu com o formalismo da época e que foi vista como um dos marcos de renovação da imprensa dos anos de 1960. Mas sua ligação mais profunda era com O Estado de S. Paulo, que seu avô, seu pai e seu irmão Júlio tinham dirigido antes dele. “O meu objetivo é o Estado. O jornal é a minha vida”, dizia. Ele assumiu a direção em 1996. Seu modelo era o The New York Times, em sua opinião, “o melhor jornal do mundo”.
Como muitas pessoas de sua geração, ele teve uma ampla vivência ideológica. Em sua juventude, Ruy Mesquita sentiu-se atraído pelas ideias de esquerda e chegou a declarar que teria entrado no Partido Comunista se ele não estivesse na ilegalidade. Mas as maiores influências intelectuais em sua formação política e na maneira de ver o mundo foram os franceses Aléxis de Tocqueville, com “A Democracia na América”, seu livro de cabeceira, o historiador Fustel de Coulanges e o filósofo Raymond Aron, “um bom observador engajado”, além do grego Tucídides. Ele deu apoio no Estado a Fidel Castro quando este chegou ao poder, e ficou agradavelmente surpreendido pela atitude pragmática do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva nos anos de 1970 e 80. Achava que a eleição de Lula, para a imagem do Brasil lá fora, foi mais importante que a eleição do Fernando Henrique Cardoso e acrescentava: “Eu tenho pavor de que isso fracasse, se ele fracassar é um desastre monumental, tão grande proporcionalmente, tão grande quanto a esperança que ele despertou.”
Uma característica marcante durante toda sua vida foram os fortes vínculos de Ruy Mesquita com a tradição familiar. A percepção de ser, mais do que dono, o herdeiro de uma missão em que a função do jornalismo vai além da informação e deve contribuir para a formação da opinião pública na defesa de valores como a democracia e o liberalismo. “O meu mérito foi ter tido o privilégio de ter nascido na família em que eu nasci e de viver na época em que eu vivi”, dizia. A vinculação da família com o jornal era forte motivo de orgulho. Durante uma entrevista à televisão, observou que a família Ochs/Sulzbeger dirigia The New York Times durante pouco mais de um século, mas a ligação da família Mesquita com O Estado de S. Paulo era ainda mais antiga. Ao longo de sua vida foi também muito forte a figura do pai, com quem dizia ter aprendido as coisas mais importantes, numa “transmissão de caracteres adquiridos”. Chegou a lamentar a ausência de um livro sobre Júlio de Mesquita Filho, na linha das obras publicadas sobre outras figuras da imprensa, como Assis Chateaubriand e Samuel Wainer. Como diretor de dois jornais importantes, ele procurava manter-se longe do poder, mesmo quando este era ocupado por pessoas com as quais ele tinha afinidade. “Para não contaminar-me.”
Nos últimos anos, observava com pesar o desaparecimento das empresas jornalísticas de controle familiar, que “passam a não pertencer a ninguém”. Ele não via outra maneira de fazer um bom jornal que não fosse com “a dedicação total e absoluta que só pode ser de quem é proprietário”, acreditava que a imprensa tinha mudado profundamente e mostrava preocupação pelos rumos que o jornalismo estava tomando. Fazia essas constatações com certo distanciamento, com o desencanto de um observador para o qual os tempos melhores – e seu próprio tempo – já tinham passado e que se resignava a ser testemunha de algo que preferia não ter visto. Em sua opinião, a imprensa tinha perdido qualidade, mas imaginava que haveria um momento em que a qualidade voltaria a ser importante.
Para ele, o jornal, que antes era só jornal, estava transformando-se numa empresa. “É melancólico ver essa modificação”, dizia, acrescentando resignado: “Mas a gente precisa aceitar isso porque é a vida atual.” Ele nunca se adaptou completamente a essa “vida atual”. Agora, dizia, não é o diretor de redação quem toma as decisões, mas o diretor-comercial. Para ele, não fazia sentido a empresa sufocar o jornal, pois, em sua opinião, “a redação é a alma do jornal”, mas “nós não podemos fazer o jornal que eu sonhava, às vezes tenho que fazer muito diferente do que sonhava, porque quem comanda não é a redação, quem comanda é a administração”. Entendia que “se predominar a necessidade de fazer concessões em nome da sobrevivência econômica, o jornal está perdido, não tem futuro”. Sentia falta de personalidades fortes nas redações atuais, ao que atribuía em parte a decadência do jornalismo. Dizia – corretamente – que um jornal traduz a personalidade de quem manda nele. “O Estado de S. Paulo era meu pai”. Muitos anos depois, o Estado seria ele, Ruy Mesquita, mas já era um jornal diferente, com problemas econômicos e sem a pujança dos tempos de Júlio de Mesquita Filho.
Escrevia numa máquina Remington, pois, segundo ele, o computador lhe tirava a inspiração
Ruy Mesquita nasceu em 1925, numa família tradicional paulista. Seus avós, pelo lado paterno, eram Julio Mesquita, proprietário do Estado, campineiro de ascendência portuguesa, de Trás-os-Montes, e considerado o patriarca e fundador da dinastia, e Lucila de Cerqueira César, filha de um cafeicultor, senador e vice-governador do Estado e sobrinha de um presidente da República, Campos Salles. Seu pai, Júlio de Mesquita Filho, de caráter reto e austero foi talvez a figura que Ruy Mesquita mais admirou e cujo exemplo seguiu. O jornalista Cláudio Abramo, que dirigiu a redação do Estado em sua época áurea, mencionou seu “fortíssimo caráter (foi um dos poucos homens de caráter reto que conheci em toda a minha vida)”. Pelo lado materno, era filho de Marina Vieira de Carvalho, cujo pai, médico famoso, foi o primeiro diretor da Clínica Ginecológica da Universidade de São Paulo.
Seu nome foi uma homenagem a Ruy Barbosa, admirado pelo pai, que o considerava “a maior figura política brasileira nos últimos cinquenta anos”. Ruy teve dois irmãos, Júlio de Mesquita Neto, o primogênito, que foi diretor do Estado e faleceu em 1996, e Luis Carlos Mesquita, o “Carlão”, o caçula e o mais descontraído e informal dos três. Morto em 1970, teve o nome inspirado no líder comunista Luis Carlos Prestes. Desde crianças, as vicissitudes do Estado e a militância política do pai contra a ditadura de Getúlio Vargas afetaram suas vidas. Os três meninos acompanharam os pais no exílio em Portugal, depois da fracassada Revolução de 1932, que recebeu o apoio do jornal e da família Mesquita. No ano seguinte, com oito anos, Ruy, que tinha paralisia infantil na perna esquerda, mais curta que a direita, foi submetido, na Clínica Rizzoli, de Bolonha, na Itália, a uma cirurgia para enxertar um músculo. Ficou três meses com um aparelho de gesso e fazendo ginástica para a distensão do joelho, “ainda duro e doído”, segundo sua mãe. Ela observou que seu filho “tem feito muito sucesso na ginástica por causa de seus já célebres olhos. Ontem, havia três moças encantadas com ele”.
No segundo exílio do pai, de 1938 a 1943, a maior parte do tempo em Buenos Aires, os filhos ficaram em São Paulo com a mãe. A correspondência entre os pais, publicada no livro Cartas do Exílio, mostra a evolução do adolescente Ruy Mesquita. A mãe observa repetidas vezes a influência da imagem do pai sobre o jovem Ruy, que, ainda menino, recortou a foto do pai publicada numa revista e a colocou num porta-retrato. Em outra carta, ela escreve ao marido que “o Ruy, então, quando discute, repete vírgula por vírgula as suas ideias”, ou que “está cada dia mais parecido com você. O jeito de andar, então, é idêntico”, ou que “o Ruy ficou radiante com a sua carta. Está com ela na carteira”, ou que “ele está ficando tão parecido com você que é engraçado. O modo de falar, os gestos, só falta a cor dos olhos e dos cabelos para ser idêntico”, apesar de seu “bigode medonho”. Mas as ideias, nesse período da vida, distavam do conservadorismo do pai. Como escrevia a mãe: “Parece um aristocrata. Quanto às idéias, é francamente de esquerda.”
Ruy Mesquita pretendia seguir a carreira de engenheiro e se preparou para estudar na Escola Politécnica. Desistiu. “Percebi que é inútil forçar uma vocação”, escreveu na época e entrou na Faculdade de Direito, curso que não chegou a concluir, mudando para a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, onde se formou em Ciências Sociais.
Sua verdadeira vocação, porém, foi o jornalismo. Pouco depois de a família ter recuperado O Estado de S. Paulo, em 1945, que durante a ditadura de Getúlio Vargas esteve sob intervenção do governo, ele começou a trabalhar na seção Internacional do jornal, chefiada por Giannino Carta, um jornalista italiano – pai dos jornalistas Luís e Mino Carta – que exerceu uma profunda influência sobre ele, como Ruy reconheceu ao longo de sua vida. Disse dele, numa entrevista na televisão, que foi o homem que lhe ensinou a trabalhar em jornal; era o jornalista mais completo, tinha sensibilidade, cultura e conhecia a profissão: “Fez a melhor seção Internacional do mundo.” Giannino Carta foi, disse Ruy, “meu pai profissional” e “meu melhor amigo”. Depois dele, Ruy chefiaria a seção Internacional. Outra forte influência, em sua vida profissional e no jornal, seria Cláudio Abramo, que chefiou a redação durante mais de dez anos, na fase áurea do Estado.
Casou-se com Laura Maria Sampaio Lara, “Laurita”. Teve quatro filhos, todos eles jornalistas, mas nenhum deles tem hoje funções executivas no grupo: Ruy Mesquita Filho foi diretor do Jornal da Tarde, Fernão Lara Mesquita trabalhou no Estado e no JT, Rodrigo Lara Mesquita dirigiu a Agência Estado e João Lara Mesquita esteve à frente da Rádio Eldorado.
Ruy Mesquita tinha uma visão elitista da imprensa. Dizia que os jornais tradicionais devem ser a leitura necessária de certos grupos minoritários que decidem, tanto no plano público como no privado. Ele teve orgulho do impacto causado pelo Jornal da Tarde durante os 30 anos em que o dirigiu, antes de assumir o Estado.
Na sua opinião, os Mesquitas nunca souberam ganhar dinheiro, nunca foram empresários
Como seu pai, Júlio de Mesquita Filho, Ruy acreditava que a verdadeira força do Estado estava em sua linha ideológica, na pregação do liberalismo como era entendido pela família. Como seus antecessores, ele considerava os editoriais a base da credibilidade do jornal e se jogava de corpo e alma nessa tarefa. “Tanto meu avô como meu pai escreviam diariamente o primeiro editorial.” Em sua opinião, um jornal neutro é um boletim de notícias. “Um jornal tem caráter, tem alma, tem personalidade.” Achava que o noticiário do Estado deveria ser o mais objetivo possível e que as ideias do jornal não podem influenciar a informação. Mas “o editorial é o jornal, e disso não abro mão”, dizia.
Os editoriais deveriam refletir uma posição ética e uma coerência política, assim como “assumir sistematicamente posições quando há conflitos de ideias, quando há confronto de ideias e de concepções políticas”. Assegurava que no Estado havia uma “predominância total e absoluta da fidelidade aos seus objetivos jornalísticos, fossem quais fossem as consequências dessa atitude em relação à situação econômica do jornal”. O respeito ao jornal “não se obtém por critérios comerciais”. Observava que o Estado foi criado com um objetivo político e que ao longo de sua história foi um instrumento de luta política. Por isso, ele foi contrário à entrada do capital estrangeiro na imprensa. Se um jornal é um instrumento de luta política, é um perigo que caia nas mãos de estrangeiros, afirmava. Ele via o risco de o jornal virar um negócio qualquer, como um fábrica de salsichas. “É o que eu chamo de a murdochização da imprensa. Ou, aqui, de tanurização da imprensa”, numa referência ao empresário de origem australiana Rupert Murdoch e ao empresário brasileiro Nelson Tanure, que adquiriu o controle do Jornal do Brasil.
Ele não se preocupou em adaptar-se às novas tecnologias. Dizia que escrevia os editoriais a máquina, numa velha Remington, pois “na frente do computador não tenho inspiração alguma” – desmentindo assim as afirmações de que ele escrevia os editoriais a mão, sem nunca ter usado sequer a máquina de escrever. O que sim é certo é que ele lia e corrigia meticulosamente os editoriais – “das primeiras às últimas crases”, numa caligrafia difícil de decifrar, mas com uma preocupação obsessiva pelo efeito de cada palavra –, para que refletissem, com todas as nuances possíveis, a visão do jornal sobre a política e a sociedade, não necessariamente a sua opinião pessoal. “É raríssimo eu não mexer muito num editorial, eu corrijo, mudo o estilo (…) eu tenho meu estilo e procuro imprimi-lo no que os outros escrevem.”
Apesar da linha liberal-conservadora do jornal, Ruy Mesquita via no Partido dos Trabalhadores o único partido estruturado do Brasil, “com uma disciplina partidária que deveria ser imitada por todos os outros partidos”, que não eram nada, apenas aglomerados. O Estado empregou jornalistas de esquerda, mas dizia que eles tinham que deixar a carteira do partido ao bater o ponto. Em relação ao Fidel Castro de Sierra Maestra, ele chegou a ter um entusiasmo “quase juvenil”. Castro apresentou Ruy Mesquita à multidão na Plaza de la Revolución, em 1959, como o jornalista que mais tinha defendido a revolução cubana. Posteriormente, segundo ele, Fidel foi o Fausto que vendeu a alma ao Mefistófeles russo. Ruy Mesquita apoiou o golpe militar de 1964 e manteve até o fim de sua vida que faria tudo de novo.
Ele fazia uma distinção entre “o noticiário” do jornal, como ele dizia, e os editoriais, dos quais ele cuidava. Afirmava que ele não interferia no conteúdo do resto do jornal, numa espécie de “gentlemen's agreement”. Quando num programa de televisão um dos entrevistadores mostrou um artigo de opinião da página 2, com o título “A gente não tem cara de babaca”, ele disse que seu pai estaria mexendo-se no túmulo. E perguntou: “Você interfere na liberdade de escolha do editor de colaboração? Por mim, eu interferia, mas não tenho a maioria dos votos. Não concordo com muita coisa que sai no jornal. Na divisão de poderes, tenho minoria”, numa referência à divergência de opiniões dentro da família a respeito dos rumos do jornal e da empresa.
É possível que nessas diferenças estivesse a raiz dos problemas que afetaram o grupo. Dizia Ruy Mesquita que “o Estado só pôde exercer o bom jornalismo porque houve união total e absoluta entre os membros da família”. Essa coesão desapareceu. As dificuldades da empresa a levaram a uma reestruturação – “um trabalho extremamente desumano de dispensa de empregados”, que “Mesquita algum seria capaz de fazer”, segundo ele. A família se desligou da gestão. Só ele, Ruy Mesquita, ficou na empresa como diretor do jornal, cuidando da linha editorial. “Se dependesse de mim, o que aconteceu não teria acontecido”, lamentava.
Assim como tinha obsessão com a orientação política do jornal por meio dos editoriais, insistia em afirmar que ele, como toda a família, nada entendia do lado comercial do jornal. Afirmava: “Não sou empresário, não tenho a menor noção de problemas empresariais, sei que foi um erro de minha parte” e disse que nunca deu palpite nas decisões empresariais, seguindo o exemplo do pai, que nunca se preocupou com as questões técnicas, “até porque não tinha concorrência”. Dizia que “coisa que Mesquita nunca soube fazer é ganhar dinheiro”. Ele insistia em afirmar que “os Mesquitas nunca tiveram mentalidade de empresário, nem os Mesquitas empresários; eles sempre puseram, acima de tudo, a função institucional do jornal”. Em seus últimos anos, Ruy Mesquita lamentava que O Estado de S. Paulo estivesse transformando-se numa empresa igual às outras, na qual a família era apenas acionista.
Como seu pai, teve uma vida austera. Em 2006 disse que estava “há 58 anos batendo ponto no jornal” e que na melhor fase do jornal comprou uma pequena fazenda no Triângulo Mineiro onde plantou seringueiras, “e não (tinha) mais do que isso”. Dizia com certo orgulho que “nenhum Mesquita tem fortuna pessoal”. Para ele, a maior fortuna eram as tradições da família e o exemplo do pai.
Em seus últimos anos, observava como a tradicional relação da família com o jornal estava no fim. “Eu não digo que esteja triste, porque cumpri meu papel; estou chegando ao fim da minha vida perfeitamente satisfeito com a contribuição que dei para a empresa, mas tenho a certeza de que sou a última geração que vai ter esse tipo de empresa”, para acrescentar que a “empresa exclusivamente familiar, acabou”. Mais ainda. Temia “que jornais como O Estado não possam mais existir em futuro não muito remoto”.
Na terça-feira (21/5), pouco depois do anúncio de sua morte, a presidente Dilma Rousseff soltou uma nota de pesar, em que o definia como “um homem de convicções”: “Ruy Mesquita foi um homem de convicções. Diretor do jornal O Estado de S. Paulo, criador do inovador Jornal da Tarde, Doutor Ruy – como era conhecido – foi símbolo de uma geração da imprensa brasileira. Neste momento de dor, presto a minha solidariedade à família e amigos.”
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Matías M. Molina é jornalista