Chegar aos 100 anos de idade é algo raro entre os seres humanos. Ainda mais raro é chegar a essa idade lúcido e saudável. Muito mais raro é completar um século de vida lúcido, saudável e com força e disposição suficientes para continuar brigando pelas próprias idéias. Trata-se de algo verdadeiramente excepcional e que deveria ser saudado por todos nós, mesmo quando não concordamos inteiramente com as idéias do aniversariante. Em 5 de julho de 2004, foi assim: o biólogo evolucionista Ernst Mayr completou 100 anos – lúcido, saudável e discutindo e escrevendo sobre ciência, mais precisamente sobre biologia. Ainda no segundo semestre de 2004, ele publicou What makes biology unique? Considerations on the autonomy of a scientific discipline (Cambridge University Press), mais um de uma série aparentemente interminável de livros.
Ernst Mayr (1904-2005) morreu na quinta-feira 3/2, nos Estados Unidos, conforme divulgou no dia seguinte o boletim Harvard University Gazzete (www.news.harvard.edu/gazette/daily/2005/02/04-mayr.html). Soube da notícia ontem, (4/2), primeiro pela Agência Estado, no texto ‘Morre Ernst Mayr, maior evolucionista do século 20’ (www.estadao.com.br/ciencia/noticias/2005/fev/04/161.htm); logo em seguida percebi que textos mais detalhados já estavam na rede – ver, por exemplo, o artigo ‘Ernst Mayr dies’, publicado em The scientist (www.biomedcentral.com/news/20050204/01).
Além da Agência Estado, apenas O Globo deu uma nota, ‘Morre o biólogo Ernst Mayr, aos 100 anos’ (http://oglobo.globo.com/online/plantao/166620117.asp), equivocada e bem mixuruca, por sinal. Todavia, como o New York Times (acesso gratuito, mas pede cadastro) publicou artigo na edição de sábado – ‘Ernst Mayr, pioneer in tracing geography´s role in the origin of species, dies at 100’ (www.nytimes.com/2005/02/05/science/05mayr.html), é possível que agora a mídia brasileira acorde e divulgue melhor a notícia.
Mayr era o derradeiro representante vivo dos grandes cientistas que trabalharam na construção dos pilares de um edifício chamado Nova Síntese: a fusão da teoria ecológica da seleção natural com a teoria genética da herança particulada. Embora as duas tenham sido originalmente elaboradas em meados do século 19 – a primeira por Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913), a segunda por Gregor Mendel (1822–1884) – ambas permaneceram afastadas (e às vezes em conflito!) até as primeiras décadas do século 20. Foi a aproximação e a gradativa combinação dessas duas grandes teorias que resultou no surgimento da Nova Síntese – ou, como também costuma ser chamada, Teoria Sintética da Evolução ou Neodarwinismo.
Noções clássicas
Esse empreendimento foi fruto do trabalho de uma série de cientistas, incluindo os pioneiros (cujos trabalhos começaram a aparecer nas décadas de 1910-1930) Sewall Wright (1889-1988), Ronald A. Fisher (1890-1962) e J. B. S. Haldane (1892-1964), culminando mais tarde (décadas de 1930 e 1940) com os esforços de Julian S. Huxley (1887-1975), Theodosius Dobzhansky (1900-1975), Bernhard Rensch (1900-1990), George G. Simpson (1902-1984), G. Ledyard Stebbins (1906-2000) e, claro, do próprio Ernst Mayr.
Quatro desses nove cientistas eram essencialmente geneticistas (Wright, Fisher, Haldane, Dobzhansky), um era paleontólogo (Simpson), dois eram sistematas (Huxley, Mayr), outro era biólogo do desenvolvimento (Rensch) e apenas um era propriamente ecólogo (Stebbins). Isso não deixa de ser intrigante, principalmente se levamos em conta que a teoria da evolução por seleção natural é uma teoria essencialmente ecológica. Nesse sentido, vale lembrar aqui que a teoria hereditária defendida por Darwin e muitos de seus contemporâneos, a chamada teoria da herança por mistura, mais tarde se revelaria equivocada – um erro de conseqüências até certo ponto irrelevantes e que serve para exemplificar o papel secundário da genética no âmbito da teoria da evolução por seleção natural.
Em terreno estritamente biológico, quatro noções clássicas formuladas e/ou sedimentadas por Mayr são as seguintes: a) a noção de espécie como uma entidade real, em oposição, por exemplo, aos conceitos arbitrários de gênero e família; b) o isolamento reprodutivo como uma barreira entre espécies (mecanismo que serviu de base para a formulação do seu famoso conceito biológico de espécie); c) a especiação alopátrica como o principal processo pelo qual novas espécies são geradas; e d) o efeito do fundador (um caso extremo de deriva genética) e seu papel na especiação ‘instantânea’.
No Brasil, dois livros
Embora esses conceitos sejam rotineiramente ensinados a todos os jovens que almejam uma carreira profissional como biólogo, há limitações sérias ou mesmo inconsistências em todos eles, a saber: a) muitos autores questionam a realidade das espécies, mesmo entre organismos que se só reproduzem de modo sexuado; b) o isolamento reprodutivo não é necessário nem suficiente para definir uma espécie; c) a especiação não depende de alopatria; e d) a seleção natural seria a causa primária da especiação. (Para detalhes, ver Mallet, J. 2001. ‘The speciation revolution’. Journal of Evolutionary Biology 14: 887-888.)
Deixando essas questões de lado, penso que, além do papel de destaque ocupado por Mayr na história da biologia evolutiva, a herança deixada agora por ele envolve preocupações mais filosóficas. Nas últimas quatro décadas, por exemplo, ele voltou-se (e escreveu cada vez mais sobre isso) para os fundamentos epistemológicos da biologia. E também aí assumiu papel pioneiro e de destaque. (Basta lembrar que a epistemologia era até bem pouco tempo uma disciplina dominada por autores inclinados quase que exclusivamente aos problemas da física.)
Um sinal marcante do seu envolvimento explícito com essa empreitada mais filosófica pode ser encontrada em seu clássico artigo ‘Cause and effect in biology’, publicado na Science, em 1961. É nesse artigo que Mayr chama a atenção para a existência de ‘duas’ biologias: a biologia funcional ou das causas imediatas, que procura explicar como os fenômenos vitais ocorrem, e a biologia evolutiva ou das causas remotas, que procura explicar porque os fenômenos vitais ocorrem do jeito que ocorrem. (Para uma detalhada discussão filosófica sobre a importância e o alcance desse artigo, ver Ariew, A. 2003. Ernst Mayr’s ‘ultimate/proximate’ distinction reconsidered and reconstructed. Biology and Philosophy 18: 553-565.)
No momento, o leitor interessado em ler alguma coisa de Mayr publicada no país terá de se contentar com apenas duas obras: Populações, espécies e evolução (1978, Companhia Editora Nacional & Edusp), livro esgotado e fora do mercado há bastante tempo, e O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e herança (1998, Editora da UnB). Curiosamente, porém, esses dois livros representam bem o legado de Mayr: o primeiro, uma versão atualizada e condensada de outra obra sua famosa (Animal species and evolution, cuja primeira edição é de 1963), ilustra seu lado como biólogo de campo, enquanto o segundo é uma portentosa condensação histórica dos fundamentos da biologia (levou quase 10 anos para ser concluído e originalmente havia planos de um segundo volume), servindo para ilustrar suas ambições mais filosóficas.
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Biólogo, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)