Trabalhava como repórter na Editoria de Cidades no Diário do Grande ABC, em São Paulo. O jornal era o mais lido no ABC, que também incluía Diadema. Não tinha para ninguém. A Folha de S.Paulo até tentou, mas não conseguiu tirar a hegemonia do Diário na região.
Por uma dose de pinga no almoço fui alçado para a editoria de Polícia. Era pegar ou largar o jornal.
Fazia as refeições com um jornalista que tinha o dobro da minha idade e o hábito de tomar cachaça no almoço.
Falava para ele beber à noite, aos sábados, domingos, feriados e dias santos, a qualquer hora, em qualquer lugar, menos durante o trabalho.
Com a conta, o jornalista pedia balas de hortelã e voltávamos para a redação. Ele ria e eu com aquela sensação de aflição alheia. Isso ainda vai sobrar para mim, pensava. Não deu outra.
O hálito de álcool exalava a metros de distância dele.
Não durou muito. Foi mandado embora por uma editora de difícil trato. Do tipo que só sorri por sarcasmo.
Um dia me chamou em um canto, perto da máquina do café, rindo muito com um monte de fotografias nas mãos.
Pensei, finalmente alguma coisa boa vai vir dela. Me deu um maço de fotos e a primeira que vejo é a de um corpo estirado em uma rodovia com partes do cérebro a um metro da cabeça rachada ao meio.
Devolvi sem ver as outras imagens e sem achar graça. Falei: deve ser pai de alguém, filho de alguém, irmão de alguém.
Foi assim que conheci o mundo cão. Estávamos no primeiro semestre de 1993.
O que poderia dar errado? Ninguém queria trabalhar na Editoria de Polícia. Era novo, precisava aprender.
A sensação que tive de sair de Cidades para Polícia foi a de ser mandado embora da primeira divisão e rebaixado para a Série D do jornalismo.
Os colegas de redação me olhavam como se eu tivesse contraído alguma doença contagiosa e mortal.
Mas não era como imaginava.
Havia neste setor jornalistas brilhantes, como Renato Lombardi, que passei a ler como referência para escrever meus textos no Diário do Grande ABC.
A mesma admiração que tinha pelo jornalista Washington Novaes, referência em meio ambiente.
Solteiro, sem filhos, morando sozinho, novo e com dinheiro no bolso, minha única preocupação naquele tempo era qual banda tocaria nas sextas-feiras no Café Piu Piu, um tradicional bar no Bixiga, no centro de São Paulo.
O Bixiga era um bairro frequentado por artistas, atores, escritores e jornalistas. Ali era possível encontrar o dramaturgo Plínio Marcos vendendo seus livros de mesa em mesa. Dele, assisti no Teatro Municipal de São Paulo a peça Dois Perdidos Numa Noite Suja.
Em uma das primeiras reportagens no mundo cão encontro o famoso repórter Gil Gomes. Ele fazia um programa policial de sucesso na época, no SBT, chamado Aqui Agora.
Acharam o que seria um cadáver jogado em rejeitos de petróleo bruto na região do ABC. Coisa de filme. Renderia excelentes imagens. Dessas que aumentam a audiência em qualquer televisão.
Apenas eu, o Gil Gomes, um cinegrafista e dois policiais civis, visivelmente encantados com a presença do apresentador. Ao revirar o corpo nos rejeitos, um falava alto: Olha o podrão aí!
Anotei o que precisava e fiquei assistindo o Gil Gomes gravar a passagem para o programa com aquela voz gutural, rouca e os gestos feitos na horizontal com o braço esquerdo. Gomes foi também ator que criou um personagem de si mesmo.
Teria adorado conhecê-lo não fosse o motivo que nos levou ali, o cadáver no petróleo.
Foi então que comecei a desconfiar que aquilo não era para mim e que a pinga do meu antigo companheiro de almoço poderia acabar um dia também na minha mesa durante o horário de trabalho.
Na época, jornais investiam em repórter e reportagens de rua. Telefone, no meu caso, só à tarde para checar alguma informação que havia escapado da ronda de manhã. Celular não existia. Jornalismo raiz.
Não raro, hoje vejo em sites jornalistas do Nordeste escrevendo sobre apreensão de drogas que ocorrem na fronteira do Brasil com o Paraguai.
Os motoristas do jornal, muitas vezes, ficavam a duzentos metros das favelas que eu precisava entrar para falar com alguém. Daqui para frente eu não vou, diziam. E lá ia eu, sozinho, com meu anjo da guarda, caneta e um bloco de anotações.
Rondas era como chamávamos o périplo pelas delegacias do Grande ABC. Incluíam também velórios, cemitérios e o Instituto Médico Legal (IML).
Tinha que ser rápido e atento nas rondas e na seleção do que renderia notícia. Pensar, avaliar e decidir sozinho. Que escola poderia ser melhor para quem estava em início de carreira?
Por ali também passavam, diariamente, vários repórteres de polícia, incluindo da Folha de S. Paulo e do antológico Notícias Populares.
O NP, como era chamado, era um jornal que transformava tragédias em realismo fantástico. Criava manchetes geniais, tipo: Médico afirma: o bebê-diabo nasceu no ABC.
As matérias do NP viravam novelas, eram feitas em série. Os repórteres do Notícias Populares eram inteligentes, tinham bom humor, conheciam perfeitamente bem seus leitores e sabiam escrever com criatividade.
Da minha parte, lia e selecionava pessoalmente os boletins de ocorrência para encontrar a história que merecia ser contada, o que renderia para o leitor do Diário do Grande ABC.
Era tanta coisa absurda que um dono de restaurante, ao saber que eu escrevia na editoria de polícia do Diário, perguntou se eu inventava o que publicava.
Lembrei do Picasso, ao ser questionado por um general alemão, diante do quadro Guernica, se teria sido o pintor que fez aquilo, quando o artista respondeu: Não, foram vocês.
A violência existia e era forte no Grande ABC no início da década de 90. Havia também o que hoje chamam de milicianos, pessoas que cobravam de comerciantes para que a loja não fosse roubada por eles mesmos.
Histórias realmente difíceis de acreditar, como desconfiava o dono do restaurante. E apareciam aos montes, diariamente.
Assassinatos, tráficos, contrabandos, assaltos a bancos, lojas e residências, violência familiar, crianças e mulheres espancadas, roubos à mão armada de carros e motos, acidentes com vítimas fatais, estupros, atropelamentos nas linhas de trem.
Surfistas da CBTU que encostavam o corpo no pantógrafo e morriam carbonizados instantaneamente. Em um desses casos, cheguei a sentir o cheiro da carne queimada da vítima.
Foi aí que conheci o termo desinteligência, uma gíria que policiais usam para qualificar crimes fúteis que poderiam ser evitados entre vizinhos, por exemplo, por causa de um gato de energia elétrica, ligação clandestina para usar luz sem pagar. Hoje se faz isso também com internet.
A maldade humana não tem limites. Coisas como a mãe deixar o filho de quatro anos para o tio cuidar, irmão dela, e o rapaz violentar a criança por meses até o menino denunciar.
Lembro da delegacia cheia de jornalistas para cobrir a matéria, uma sensação de náusea no ar, a mãe da criança desesperada, o criminoso com um olhar distante, como se não estivesse ali.
Na cadeia, bandido não perdoa crimes contra crianças, mães e estupros.
Fora as rondas, tinham as notícias que surgiam do nada, no dia a dia, como um violento assalto a banco em Santo André.
Quadrilha grande, tiros entre policiais e ladrões. Nove são presos.
Lá vou eu para a delegacia. Chego e vejo os bandidos perfilados e algemados um ao outro. No meio um baixinho me chama discretamente e fala que não tinha nada com isso. Ouviu os tiros, ficou com medo, correu e a PM o jogou no camburão.
Pergunto para um ladrão se o baixinho é da quadrilha. Ele me encara como se quisesse me esganar e balança a cabeça negativamente. Vou até o delegado. Doutor, o menorzinho da fila é trabalhador.
Com muito custo, depois de um bom tempo, interrogatórios e telefonemas, ele foi liberado.
Quem não tem carreira no crime não aguenta cadeia.
As rondas da reportagem começavam em Santo André, passavam pelas delegacias do ABC, Mauá e terminavam em Ribeirão Pires, o lugar mais legal de todos, bem tranquilo, em meio à natureza e à Mata Atlântica.
Os crimes em Ribeirão Pires eram raros. Em um deles o ladrão dormiu no ponto de ônibus, às cinco da manhã, depois de roubar uma casa. Estava cansado, cochilou ao lado de um saco com roupas e uma pequena televisão ao seu lado. A polícia passou, desconfiou, o acordou e o prendeu em flagrante.
Rendeu uma charge ao lado do texto.
Em Ribeirão Pires escrevi a história de um rapaz casado com duas mulheres. Os três viviam em perfeita harmonia. Há 31 anos, trisal não monogâmico não era normal como hoje e no Império Romano.
Em Ribeirão Pires a delegacia funcionava no mesmo lugar do cadeião.
Lá era muito bem recebido pelo João, um senhor magro, bem apessoado, aparentando 45 anos, muito educado, formado em geografia. Era professor e sócio de uma imobiliária antes de parar ali.
Durante meses chegava, dava bom dia, tomava água e um cafezinho enquanto batia um papo com o João.
Brincava com ele. O que é que tem de bom aí, João?
Em um desses dias, antes de ir embora pergunto, por curiosidade de repórter, quantos presos havia no cadeião de Ribeirão Pires?
Ele responde: comigo são tantos. Não me recordo quantos agora, mas eram muitos.
Fiquei parado, olhando para ele. O João sorriu, meio que envergonhado mas ao mesmo tempo aliviado por contar.
Penso que ele poderia achar que a maneira que o tratava poderia mudar se eu soubesse a verdade.
Jornalista não é juiz. Nosso trabalho não é julgar. É narrar fatos, ouvindo os dois lados da mesma história ou mais, se houver.
O João havia matado o sócio da imobiliária, dentro de um Monza. Os dois, segundo ele, discutiram dentro do carro.
O amigo retira uma arma do porta-luvas. Os dois começam a brigar. Na confusão o revólver dispara e o tiro atravessa a barriga da vítima, que morreu no local.
A desinteligência que o policial falou.
Resultado: um pai de família morto e o outro na delegacia, onde trabalhava durante o dia como recepcionista e à noite cumpria pena no cadeião. Duas famílias destroçadas.
Era muita coisa ruim por dia, durante a semana e o mês todo.
Com o tempo, passei a dormir rangendo os dentes. Depois tinha pesadelos e acordava várias vezes nas madrugadas. Por fim, quando dormia, era com as mãos fechadas, apertadas. Geralmente, via o dia amanhecer.
Sempre que vejo a jovem e talentosa jornalista Paola de Orte, da TV Globo, cobrindo a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas penso como tanto horror deve mexer com o emocional ela.
Em uma manhã de sol de segunda-feira, passo de ônibus em frente ao jornal em Santo André. Resolvo não descer no ponto. Vejo pela janela o prédio ficar cada vez menor. Me deixei levar até a Praça da República, em São Paulo, na última parada.
Sentei em um banco e fiquei olhando os paulistanos correndo para o trabalho, a Big Apple da América Latina. São Paulo é uma máquina de moer gente.
Ligo de um orelhão para a redação para dizer que não iria trabalhar. Voltei no dia seguinte e pedi demissão.
Recebi proposta para trabalhar na Editoria de Cultura. Seria como sair da Série D do campeonato brasileiro e ser contratado para jogar em um time europeu. Recusei.
A editoria mais animada no Diário do Grande ABC era a de Esportes. A rapaziada escrevia rindo, se divertindo. Os cabeças, mais experientes, estavam na Política. Os nerds na Economia e Informática.
Após me formar em jornalismo no ano anterior [1992] já era hora de voltar para casa. O projeto sempre foi este. Ir, estudar e voltar.
Voltei vivo para Campo Grande, Mato Grosso do Sul. E isso inclui sobreviver às noitadas de boemia no Bixiga.
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Paulo Renato Coelho Netto é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”.