O site da revista Veja noticiou a morte de Eduardo Galeano em tom de deboche e desdém, numa lacônica nota em que definiu, sob a rubrica de “entretenimento”, um dos maiores escritores latino-americanos do século 20 como um “ídolo bolivariano”.
Essa atitude – previsível, vinda de quem veio – me fez lembrar um episódio pitoresco que vivi quando trabalhava naquela revista, como editor de Internacional. Ocorreu em dezembro de 1996, quando a Veja iniciava sua transição de uma publicação conservadora para o panfleto de extrema-direita em que se tornou.
Recebi da Editora L&PM, de Porto Alegre, o livro Futebol ao Sol e à Sombra, do Galeano, recém-lançado em português, e resolvi tentar emplacar uma resenha da obra, mesmo sabendo do ódio que os responsáveis pela Veja tinham pelo escritor.
Expliquei que esse era um livro “diferente”, “leve”, em que ele contava histórias curiosas relacionadas com o futebol, os craques do passado etc…
O chefete com quem eu conversei topou sem me ouvir direito. Imaginou, talvez, que Galeano era mais um que começava a renegar suas posições de esquerda, como tantos fizeram naqueles tempos. De qualquer modo, era época de final de ano e nós tínhamos de produzir muitas páginas além do normal, para acompanhar o aumento dos anúncios, que engordava a revista. A sugestão vinha a calhar.
Coautoria
Escrevi a resenha com todo o cuidado para não abordar nenhum tema político. Eu encarava a mera publicação de uma resenha elogiosa de um livro do Galeano na Veja como uma proeza, mistura de ação guerrilheira (guardadas as devidas proporções) com molecagem pura e simples.
Encerrei o texto com a reprodução de uma crônica em que o genial escritor uruguaio usou apenas quatro palavras. Ele se referia a um jogo na Copa do Mundo de 1994 em que a Argentina, depois de derrotar a Nigéria por 2×1, foi desclassificada porque, no exame de doping, realizado com alguns jogadores escolhidos ao acaso, o teste de urina de Maradona apontou a presença de resíduos de cocaína.
A crônica de Galeano, intitulada “Maradona 1994”, dizia somente isso: “Jogou, venceu; mijou, perdeu.”
Concluí o texto e entreguei ao Tales Alvarenga (já falecido), diretor-adjunto da revista, responsável pelo fechamento das páginas de Livros. Ele leu, aprovou e me liberou para ir para casa.
No domingo, quando recebi a revista, percebi que o Tales tinha alterado a citação do Galeano, sem meu conhecimento. Ele nem ligou para o fato de que não era no meu texto que ele estava mexendo e sim na tradução de uma obra literária, autoral. Lembrou apenas de que a revista, como norma editorial, não publicava termos considerados chulos.
Então o texto do Galeano, na citação da Veja, ficou assim: “Jogou, venceu; urinou, perdeu.”
Está nos arquivos, para quem quiser conferir.
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Igor Fuser é professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC). Na profissão de jornalista, trabalhou durante vinte anos em publicações como Folha de S.Paulo, Veja, Exame, Superinteressante e Época