Conversar com Eduardo Galeano no café Brasilero, na rua Ituzaingó, na Ciudad Vieja, em Montevidéu, podia parecer incômodo no princípio. Nas mesas ao lado, as pessoas apontavam, comentavam e tiravam fotos do intelectual uruguaio.
Sentado quase sempre na mesma mesa, perto da janela, se dizia acostumado com os observadores. Na parede do café, havia também fotos do autor, mais jovem, em encontros captados ali mesmo.
Frequentador do centenário estabelecimento desde os 19 anos, quando começou a trabalhar no jornalismo, Galeano só deixara de ir ali diariamente nos anos 1970, quando esteve exilado, e nos períodos em que a antiga confeitaria estivera fechada.
“Sou filho da cultura dos cafés, filho de uma Montevidéu que está desaparecendo. Para mim, as conversas ouvidas, as leituras ou as reflexões que faço aqui sozinho, são onde melhor aprendo”, disse, quando nos encontramos ali, numa tarde fria do outono uruguaio.
A razão da reunião não era uma entrevista jornalística, e sim uma consulta para uma pesquisa pessoal sobre história intelectual da região. Galeano se mostrou solícito e feliz em falar sobre os clássicos do rio da Prata. Orgulhava-se de pertencer a um país tão pequeno, mas que considerava ter dado ao mundo grandes autores.
De dois deles, bebera diretamente da fonte, Juan Carlos Onetti (1909-1994) e Mario Benedetti (1920-2009).
O fato de sua obra mais famosa (“Veias Abertas da América Latina”) ter ficado datada era apenas uma das expressões de seu espírito de intelectual nostálgico, até o fim da vida engajado de maneira romântica nas causas que defendera na juventude. E romântico quanto às cidades que considerava como seu lar: Buenos Aires e Montevidéu.
Última aparição
Galeano formara-se na escola de jornalismo crítico e vigoroso que existia às margens do rio da Prata, nas décadas de 1960 e 1970 –e que seria calada pelas ditaduras argentina e uruguaia, na década seguinte.
Primeiro, estivera no semanário cultural e político uruguaio “Marcha”, do qual Onetti era secretário de Redação e que tinha colaboradores como Benedetti, Ángel Rama e outros.
Depois, na argentina “Crisis”, nascida durante governo do general Alejandro Lanusse (1973) e enterrada pouco depois do golpe militar de 1976. Naquele tempo de muita violência política, com a guerrilha e a repressão já nas ruas, “Crisis” tratava dos embates da intelectualidade de esquerda no Chile, no Uruguai e na Argentina.
Ao voltar do exílio espanhol, nos anos 1980, Galeano tornou-se um crítico do jornalismo que se passou a fazer após a volta da democracia. Não via com bons olhos a redução dos espaços de opinião, nem a profissionalização, que considerava excessiva, do ofício. Preferiu seguir atuando por meio dos livros de história, ensaio político e futebol.
Galeano não se mostrava incomodado com o fato de ser tão conhecido apenas por “Veias Abertas”. Mas falava apaixonadamente de outras obras, entre as quais destacava “Memória do Fogo” (1986), trilogia sobre história da América Latina contada em forma de pequenos relatos poéticos, desde o princípio do mundo até o século 20.
Permaneceu produtivo até os últimos tempos, apesar do câncer que, em 2007, quase o matou.
Em 2008, lançou “Espelhos”, uma proposta de história universal a partir do ponto de vista dos excluídos. Três anos depois, “Os Filhos dos Dias”, obra semificcional em formato de calendário.
Andava resistente a opinar sobre política atual para os meios que o procuravam. Mas vestira a camisa da Frente Ampla para apoiar Tabaré Vázquez em 2005, e comemorara a chegada, que considerava tardia, de sua esquerda romântica ao poder.
Sua última aparição pública foi coerente com as bandeiras das quais nunca desistiu. Muito magro e abatido, posou para fotos com o boliviano Evo Morales, que o queria arregimentar em sua cruzada pela recuperação do acesso ao mar contra o Chile, perdido durante a Guerra do Pacífico (século 19).
***
Sylvia Colombo, da Folha de S.Paulo