Foi um tanto melancólico o material produzido pela imprensa para marcar a passagem dos 10 anos da morte do mais influente jornalista brasileiro do final do século passado: o analista político e crítico de cultura Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, mais conhecido como Paulo Francis, que morreu no dia 4 de fevereiro de 1997, de enfarte, aos 66 anos de idade.
Mesmos os veículos em que ele pontificava com uma página dominical, a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, não lhe dedicaram espaço condizente com a importância a ele conferida enquanto vivo, nem foram capazes de criar textos com abrangência e espírito crítico à altura dos que o próprio Francis escrevia.
Ele, que sempre lamentou a derrubada de árvores para a fabricação do papel-jornal desperdiçado com tolices e bajulações, talvez franzisse a testa diante de alguns disparates, como a desproporcional relevância que o Estadão acabou dando à participação do Francis na nada lendária revista Diners, em detrimento, por exemplo, do fenômeno Pasquim. Talvez repetisse uma daquelas inesquecíveis frases ferinas, características do seu jeito carioca de ser. Por exemplo: ‘A sociedade de massas é, por definição, o fim da civilização. Bolsões de vida inteligente sobrevivem a duras penas’.
Depois de estudar em colégios de jesuítas e beneditinos, Francis cursou por uns tempos a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, trocada por uma pós-graduação em Literatura Dramática na Universidade de Columbia (Nova York), que também não concluiu.
Chegou a ser ator e diretor teatral, mas acabou no nicho tradicional dos que são melhores para escrever sobre suas paixões artísticas do que para personificá-las: a crítica, a partir de 1959, no Diário Carioca. Paralelamente, colaborava com a revista Senhor (que mais tarde viria a editar) e escrevia sobre política no jornal Última Hora, de Samuel Wainer.
Relatou, mais tarde, um episódio pitoresco do seu noviciado. Entregou uma crítica teatral toda pomposa, repleta de termos pernósticos, ao seu editor. Ao recebê-la de volta, viu um grosso traço vermelho circundando a expressão ‘via de regra’. E o comentário: ‘Via de regra é a vagina’ [para os jovens que desconhecem o linguajar de outrora, esclareço que ‘regras’ era um eufemismo para menstruação. E, claro, a palavra usada para designar o órgão genital feminino foi outra, chula].
Francis disse que essa foi a primeira e única lição aproveitável de jornalismo que recebeu: escrever com simplicidade e clareza, em vez de pavonear-se com exibições desnecessárias de erudição.
Também comentou que tudo que há para se aprender de jornalismo, aprende-se em 15 dias numa redação. Daí sua avaliação de que o fundamental para o exercício dessa profissão é uma formação cultural sólida, humanística e universalizante. Quanto às técnicas, poderiam ser ensinadas em meros liceus de artes e ofícios. [Concordo plenamente: se a especialização é castradora em outras atividades, muito mais no jornalismo, que tem tudo a ver com história, sociologia, psicologia, antropologia, política, economia, literatura. Quem não consegue refletir sobre o mundo em que vive, melhor faria direcionando-se para administração de empresas.]
Na trincheira das palavras
Embora não deixasse de perceber os erros e limitações das esquerdas brasileiras, tão distantes da grandeza histórica e intelectual de seu ídolo de então – Trotsky, o teórico da revolução permanente e mártir da oposição de esquerda ao stalinismo –, Francis considerava que a prioridade era combater as forças de direita. Foi o que fez no conturbado período da renúncia de Jânio Quadros, da tentativa de golpe para impedir a posse do vice-presidente eleito e do ziguezagueante governo de João Goulart.
Não desistiu depois do golpe militar. No Correio da Manhã, na Tribuna da Imprensa e na revista Realidade, continuou manifestando seu inconformismo com o país da ordem unida.
O lançamento do semanário O Pasquim, em junho de 1969, deu-lhe projeção nacional. A Senhor e a Realidade já o haviam tornado conhecido em outros estados, mas num círculo restrito de intelectuais e pessoas sofisticadas. O Pasquim sensibilizou o público jovem, atingindo tiragens mirabolantes para um veículo alternativo. E Francis era o guru da turma em todos os assuntos referentes à política nacional e internacional, bem como à visão de esquerda da cultura. Com seus conhecimentos vastíssimos, dominava qualquer discussão.
Leitor assíduo de um sem-número de publicações estrangeiras, tinha sempre algo novo a dizer sobre a intervenção estadunidense no Vietnã, um dos grandes temas da época; era também um crítico implacável da postura israelense de impor sua vontade pela força no Oriente Médio. Disponibilizava as informações que a grande imprensa – por ideologia, covardia ou incompetência – sonegava dos leitores.
E, sendo um dos críticos mais contundentes do reacionarismo dos EUA, também não poupava a URSS, que colocava praticamente no mesmo plano, como grande potência que priorizava sempre seus interesses (e não os da revolução). Isso só fazia aumentar seu prestígio aos olhos de uma geração que se decepcionara terrivelmente com o esmagamento da Primavera de Praga, em 1968.
Cansado de ser preso e censurado pela ditadura, mudou em 1971 para Nova York, de onde mandava seus textos para o próprio Pasquim, a Tribuna da Imprensa, a revista Status e a Folha de S.Paulo (à qual chegou pelas mãos do diretor de redação Cláudio Abramo, também de formação trotskista).
Continuava, basicamente, um homem de esquerda, mas travava polêmicas azedas com o que ele considerava ‘esquerdistas de salão’, como a feminista Irede Cardoso. [Ela sofreu um dos maiores massacres intelectuais a que já assisti.]
Sob os holofotes globais
Paulo Francis está entre os muitos intelectuais brasileiros que foram perdendo o pique à medida que a ditadura ia deixando de exibir suas garras.
A partir de seu posto de observação privilegiado, captou bem a tendência desestatizante do final do século passado, ajudando a impulsioná-la com seus escritos em O Estado de S.Paulo e suas participações no jornalismo da Rede Globo, bem como no programa de TV a cabo Manhattan Connection.
Mas, se estava certo quanto à falta de pujança da economia soviética e o parasitismo das estatais brasileiras, não percebeu que o mundo engendrado pela globalização viria a ser uma versão mais desumanizada ainda do capitalismo selvagem. Mesmo porque todos aqueles avanços científicos e tecnológicos que estavam ocorrendo simultaneamente (informática, biotecnologia, engenharia genética, novos materiais e processos) pareciam augurar um futuro bem melhor.
Acabou como um daqueles medalhões midiáticos que antes ridicularizava, aclamado mais por ter se tornado celebridade do sistema do que pela real qualidade de seu trabalho – como suas incursões pela literatura, em que a racionalidade e a mordacidade excessivas deixam tudo com um jeitão artificial, de tramas concebidas para provar teses e ridicularizar comportamentos e desafetos.
Morreu na hora certa, antes que o admirável mundo novo erguido sobre os escombros do muro de Berlim mostrasse suas feições mais monstruosas.
Ou, pelo contrário, talvez tenha perdido a chance de constatar que o fim do socialismo real não significava o fim da História, com o status quo se tornando tão opressivo que os homens estão sendo obrigados a buscar uma nova utopia.
O certo é que, independentemente de haver caído numa armadilha do destino em sua última fase, foi um intelectual articulado e consistente como dificilmente se vê nestes tristes trópicos, deixando o legado de uma atuação memorável na segunda metade dos anos 1960 e ao longo de toda a década de 1970.
Talvez o melhor epitáfio para Paulo Francis seja outra de suas frases célebres: ‘Não há quem não cometa erros e grandes homens cometem grandes erros’.
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Jornalista e escritor