A criatividade brasileira perdeu um dos seus grandes nomes: Fernando Brant. Um dos mais importantes compositores da música brasileira morreu, na sexta-feira, dia 13/6, aos 68 anos, após complicações em cirurgia de fígado. O músico, integrante do legendário “Clube da Esquina”, era o principal parceiro de Milton Nascimento. Brant também se dedicou a escrever crônicas que foram publicadas regularmente no jornal Estado de Minas. Um dos seus textos, em especial, me chamou a atenção. Em “A planície e o planalto” (Estado de Minas, 01/02/2012), Fernando Brant, refletindo sobre o nosso país e seu destino, lançou mão do seguinte parecer: “Diante da complexidade dos obstáculos que precisamos superar, só a esperança não basta. Qualquer brasileiro de cultura média sabe que o maior entrave para o nosso sucesso é a educação. Os analfabetos e os semi são um peso que não dá para carregar. Incluídos no conhecimento, com sua força o país seria mais leve de levar.”
Mesmo ciente do louvável empenho do artista em colaborar para o progresso da educação brasileira, achei estranha a construção argumentativa de Fernando Brant. Uma coisa é combater o analfabetismo; outra coisa é considerar os analfabetos e os semi “um peso que não dá para carregar”. Tomei a iniciativa de enviar um e-mail para o cronista, solicitando que ele se posicionasse a respeito desta nossa ressalva. Prontamente, o principal letrista do cancioneiro miltoniano me respondeu, por e-mail datado de 15/02/2012: “Obrigado, Marcos Fabrício, pelo comentário. O que eu quis dizer, e parece que não fui claro, é que a falta de educação faz com que os brasileiros mal ou não alfabetizados não tenham condições de colaborar com maior eficiência para o desenvolvimento do país. O analfabetismo é que é um peso difícil de carregar. Quanto mais educação melhor o país. Não condeno quem sofre essa condição de analfabetismo, e sim, os administradores que, ao longo de décadas, não solucionaram esse problema. Há muito discurso e pouca prática. Um abraço, Fernando Brant.”
Assim como o artista, acredito no poder transformador da educação no que se refere à promoção da inteligência coletiva disposta a viabilizar a vida em plenitude. Só tenho receio de que, no afã de defender a educação como saída para os nossos problemas mais crônicos, resquícios de uma mentalidade elitista nos impeçam de perceber o destacado papel dos analfabetos e dos semi no funcionamento da máquina produtiva e cultural do país e no sustento dos estudos dos alfabetizados, apoiando-os material e moralmente. Não podemos ignorar o importante testemunho dado pelo mestre Patativa do Assaré em “O poeta da roça” (1956):
“Sou fio das mata, cantô da mão grossa,/Trabaio na roça, de inverno e de estio./A minha chupana é tapada de barro,/Só fumo cigarro de páia de mio./Sou poeta das brenha, não faço o papé/De argum menestré, ou errante cantô/Que veve vagando, com sua viola,/Cantando, pachola, à percura de amô./Não tenho sabença, pois nunca estudei,/Apenas eu sei o meu nome assiná./Meu pai, coitadinho! vivia sem cobre,/E o fio do pobre não pode estuda./(…)/Eu canto o mendigo de sujo farrapo,/Coberto de trapo e mochila na mão,/Que chora pedindo o socorro dos home,/E tomba de fome, sem casa e sem pão,/E assim, sem cobiça dos cofre luzente,/Eu vivo contente e feliz com a sorte,/Morando no campo, sem vê a cidade,/Cantando as verdade das coisa do Norte.”
Necessidades e sonhos
Aproveitando a entrada temática no mundo do trabalho, cabe destacar a felicidade criativa de Fernando Brant, ao compor a letra de Caxangá (1983), em parceria com Milton Nascimento:
“Sempre no coração/haja o que houver/a fome de um dia poder/morder a carne dessa mulher/Veja bem meu patrão/como pode ser bom/você trabalharia no sol/e eu tomando banho de mar/Luto para viver/vivo para morrer/enquanto a minha morte não vem/eu vivo de brigar contra o rei/Em volta do fogo/todo o mundo abrindo jogo/conta o que tem pra contar/casos e desejos/coisas dessa vida e da outra/mas nada de assustar/quem não é sincero/sai da brincadeira correndo/pois pode se queimar, queimar/Saio do trabalh-ei/volto para cas-ei/não lembro de canseira maior/em tudo é o mesmo suor.”
A música se refere à relação entre trabalho, subjetividade humana e ética. Recorrendo à Grécia Antiga, o trabalho apresentava um duplo sentido: o sublime e o pejorativo. No primeiro caso, o trabalho estava relacionado à política na organização e na administração da sociedade humana. No segundo, era visto como uma condenação à busca de sobrevivência humana. O trabalho, na mitologia helênica, pode ser concebido em dois grandes mitos: o de Sísifo e o de Ícaro. Sísifo foi condenado pelos deuses a, incessantemente, rolar uma rocha até o topo de uma montanha, de onde a pedra cairia de volta devido ao seu próprio peso. Os deuses pensaram, com alguma razão, que não há punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Nesse mesmo sentido, em latim, trabalho (tripalium) se refere a uma espécie de canga igual à que é usada pelos bois que puxam o arado ou até mesmo a um instrumento de tortura, de sofrimento.
Penso que o maior sacrifício de Sísifo não foi viver fazendo todos os dias a mesma atividade laboral, mas ser condenado a um trabalho que lhe tirava o sossego, a contemplação e os sonhos. Como muitos homens modernos, Sísifo vivia para trabalhar, enquanto que Ícaro, com suas “asas indomáveis”, representaria o esforço humano de trabalhar para viver e gozar. Nos embalos de Caxangá, podemos verificar que temos cada vez mais necessidade de trabalhar, mas também de viver movidos pelos sonhos de liberdade por meio do próprio labor que realizamos. Isso porque a vida do ser humano é feita de necessidades e sonhos, de força e inteligência, de dureza e leveza. Necessidades de Sísifo e sonhos de Ícaro, dureza de pedra e leveza de asas.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários