Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974): compositor, boêmio e cronista

“Lupi, velho guerrilheiro da caixinha de fósforos”
Jornalista Paulo Santana (1939-2017)

 

Em agosto de 2017, completam-se 43 anos da morte de um grande ícone da música brasileira: o gaúcho Lupicínio Rodrigues. Nascido, em Porto Alegre, na Ilhota, em uma noite chuvosa de 16 de setembro de 1914, ainda menino, fugia de casa para participar das rodas de samba que, com frequência, ali ocorriam. A antiga Ilhota se localizava nas atuais imediações do Estádio Tesourinha e do Centro Municipal de Cultura, constituindo-se num dos espaços mais importantes de resistência cultural do negro na capital gaúcha.

Lupi — como carinhosamente era chamado — exaltou, em suas canções, o amor com suas alegrias, sonhos, dores e desencantos, adentrando, com a precisão de um bisturi, nos mistérios da alma e do coração.

A Família

Sua primeira composição, aos 14 anos, chamava-se “Carnaval”. Esta foi encomendada pelo cordão ”Os Prediletos” que era oriundo da antiga Colônia Africana. Totalizando 21 filhos, Lupi foi o quarto e o primeiro varão do casal Francisco Rodrigues e Abigail. Embora não se adaptando a rotina escolar, completou o curso ginasial e aprendeu o ofício de mecânico.

As dificuldades financeiras levaram Lupi a exercer, desde cedo, várias atividades: baleiro, em frente do Cinema Garibaldi, entregador de pacotes na famosa Livraria do Globo, empurrador de roda de bonde na Cia. Carris e fazedor de parafusos na Fábrica de Cipriano Micheletto. A sua paixão por música e pela vida boêmia fez com que seu pai o alistasse, aos 15 anos, no Exército, acreditando que estaria dando outro rumo à vida do filho.

O primeiro amor

Promovido a cabo, em 1933, transferiram-no para Santa Maria. Nesta cidade, Lupi conheceu a jovem Iná, que foi o seu primeiro grande amor. Após cinco anos, o noivado foi desfeito, pois os pais da noiva não aprovaram o seu comportamento boêmio. Ao vê-la enamorada por outro, ele sentiu um desgosto profundo. Este sentimento de traição foi a força motriz, que o inspirou a compor canções de teor passional, consagrando-o como “O Rei da dor de cotovelo”.

No ano de 1935, deu baixa do Exército, retornando para Porto Alegre. De volta à capital, empregou-se como bedel na Faculdade de Direito da UFRGS. Reza a tradição de que, diante da monotonia de algumas aulas, os alunos preferiam ouvir as canções de Lupi a estudar. Ele costuma repetir que o amor era a causa de todos os seus males, aposentando-se, em 1947, devido à saúde debilitada.
Durante as comemorações do famoso Centenário Farroupilha (1935), Lupi participou de um concurso musical que foi organizado pela Prefeitura. A canção vencedora foi “Triste História”, cuja composição contou com a parceria de Alcídes Gonçalves (1908-1987).

Em 1936, gravou a canção “Pergunta aos meus tamancos” da autoria de ambos. Esta famosa dupla compôs, também, outros inesquecíveis sucessos: “Castigo” (1953), “Maria Rosa” (1949), “Cadeira Vazia” (1949), “Quem há de dizer” (1948), entre outras composições.

Seu primeiro sucesso

O sucesso chegou, em 1938, com o samba “Se acaso você chegasse”, que foi gravado por Cyro Monteiro (1913-1963), em parceria com Felisberto Martins (1904-1980). Este último, que morava no Rio de Janeiro, foi responsável pela divulgação desse trabalho. Lupi foi matéria na Revista Carioca (1930-1960), uma das mais populares da época. Nos anos 50, esta revista chegou a registrar uma foto de Lupi a dedilhar um violão, mas a imagem não passava de uma “jogada” editorial, pois ele não tocou nenhum instrumento, exceto quando batucava numa caixa de fósforos.

Seu estilo era compor assoviando a melodia e anotando as letras em guardanapos e pedaços de papel, Em uma viagem ao Rio de Janeiro, em 1939, Lupi conheceu Francisco Alves (1898-1952) – “O Rei da Voz” – que acabou gravando as canções: “Nervos de aço” (1947), “Esses Moços” (1948), “Quem há de dizer” (1948) e “Cadeira Vazia” (1950).

Embora o jornalista Marcelo Campos – que é autor do Almanaque do Lupi (2014) – não concorde, muitos autores e a tradição oral afirmam que as canções de Lupi se tornaram conhecidas, no centro do país, graças também aos marinheiros, que frequentavam bares e boates em Porto Alegre. Ao desembarcarem, noutros centros, divulgavam o que haviam escutado na noite gaúcha.

https://www.youtube.com/watch?v=fMVTL3tHamo

Outro amor fracassado

Abandonado pela carioca Mercedes, ele viveu outra grande decepção amorosa, que o inspirou a compor “Briga de Amor”, “Minha Ignorância”, “Nunca” e “Vingança.”. Nesse ínterim, foi pai de uma menina com Juraci de Oliveira,. Esta, à beira da morte, levou-o a legalizar a união.

Os ícones nacionais Orlando Silva (1915-1978) e Linda Batista (1919-1988), também, gravaram músicas compostas por Lupi.. O primeiro, em 1947, interpretou as canções “Brasa” e “Zé Ponte”; já a segunda, em 1951, com a canção “Vingança”, alcançou um sucesso absoluto.

Lupi, em 1949, casou-se com a gaúcha Cerenita Quevedo. Esta o acompanhou até o final de sua vida, sendo a mãe de Lupicínio Rodrigues Filho, o Lupinho. A canção “Exemplo” foi composta por Lupi em homenagem à dedicação da esposa. Cerenita adotou e criou a filha de Lupi, cujo nome era Clara Terezinha Rodrigues.

O Hino do Grêmio

No ano de 1952, gravou seu primeiro álbum “Roteiro de um Boêmio”. No ano seguinte, compôs o atual Hino do Grêmio. No dia do jogo – Grêmio x Cruzeiro – houve muita dificuldade de acesso ao local, o Estádio da Baixada, no bairro Moinhos de Vento, devido a uma greve iniciada dias antes pelos motoristas, motorneiros e cobradores de ônibus e bondes da Carris, Soul e Teresópolis. Este fato justifica o verso presente no hino “Até a pé nós iremos…” Lupi é homenageado pela família gremista, por meio de um retrato, na Galeria dos Gremistas Imortais, no salão nobre do clube. Em 1954, ano do suicídio do presidente Vargas, seu samba-canção “Aves daninhas” foi gravado por Nora Ney, pela Continental, constituindo-se num grande sucesso.

O Racismo no Futebol

O pai de Lupi, Francisco Rodrigues, pertenceu à Liga da Canela Preta, tendo sido um dos fundadores e jogador do Rio-Grandense, que fazia parte desta liga. Ao tentar introduzir o time, no campeonato oficial, recebeu o veto do Sport Club Internacional. Este fato fez com que Lupi se desencantasse com o time colorado, passando a torcer para o Grêmio (1903). O racismo era muito intenso à época. Embora o Internacional (1909) seja conhecido como o Clube do Povo, ele passou a incluir negros somente a partir da década de 20.

A elite branca, representada por italianos e alemães, dirigia os principais times, naquela época, e não aceitava a presença de jogadores negros. Devido a esse preconceito, criou-se, na década de 1910, na Ilhota, a Liga da Canela Preta. É neste local , em 1914, no ano da eclosão da 1º Guerra Mundial, que nasceu Lupi.

Ao som de uma caixa de fósforos e assoviando, numa mesa de um bar, ele compôs verdadeiros relicários musicais que atravessaram gerações. Suas composições espelham as emoções mais profundas da alma. Lupi foi o canal de expressão dos que desafiavam a moral vigente e daqueles que buscavam alívio de suas dores na mesa de um bar. Bastava assoviar e batucar numa caixa de fósforos, para que suas mágoas se transformassem em poesia. Sua música é um mosaico de amores, vinganças, encontros e abandonos. Ele desnudou, como ninguém, a psique humana. O amor foi a bússola que orientou a existência do “ Rei da dor de cotovelo”.

A partir da canção “Ela disse assim”, em 1959, suas canções se popularizaram, ainda mais, na voz do saudoso José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão (1913-2008), que se tornou um dos seus maiores intérpretes. Ainda, em 1959, Elza Soares gravou o famoso samba “Se acaso você chegasse”.

A Política

Em 1959, Lupi concordou em concorrer pelo Partido Republicano (PR), uma sigla pouco expressiva e que, no Rio Grande do Sul, também servia de reduto para comunistas do PCB, porém atingiu apenas 396 votos. Isto fez com que ele desistisse da carreira política, Em sua plataforma eleitoral, ele defendia os direitos dos cantores e músicos que trabalhavam à noite nas boates e bares da capital numa espécie de nacionalismo boêmio.

O cronista da Última Hora

Última Hora (1960-1964) foi o único jornal da capital que não apoiou o golpe de 64 e defendeu, abertamente, a figura do presidente João Goulart e sua política de reformas de base. O posicionamento contrário ao golpe acarretou o encerramento das suas atividades. Neste periódico, no período de fevereiro de 63 a fevereiro de 64, Lupi escreveu sobre as suas composições e a vida boêmia de Porto Alegre, totalizando 42 crônicas. A coleção deste periódico faz parte do acervo do Museu da Comunicação Social Hipólito José da Costa que, desde setembro de 1974, é responsável pela guarda, preservação e difusão da memória dos meios de comunicação em nosso Estado.

O empresário

Alguns bares e restaurantes foram gerenciados por Lupi, como o Jardim da Saudade, o Clube dos Cozinheiros, o Batelão e o Bar Vingança. Ele costumava declarar que não visava ao lucro, apenas reunir os amigos para confraternizar.

Lupi é redescoberto

Após um tempo de ausência nas paradas, devido ao sucesso do rock e da bossa nova, na década de 60, artistas famosos regravaram as composições do “Rei da Dor de Cotovelo”, a exemplo de Elis Regina (Maria Rosa), Zizi Possi (Nunca), Maria Bethânia (Foi Assim), Caetano Veloso (Felicidade), Gal Costa (Cadeira Vazia) Paulinho da Viola (Nervos de Aço), Gilberto Gil (Quem há de dizer) entre outros nomes da nossa MPB. Lupi compôs cerca de 600 composições, tendo gravado, aproximadamente, 150. Seus biógrafos registram que seu lado compositor sofreu influência de Noel Rosa (1910-1937), enquanto o cantor se espelhou na figura de Mário Reis (1907-1981).

Lupicínio Rodrigues faleceu de insuficiência cardíaca, em 27 de agosto de 1974, e foi sepultado, no Cemitério São Miguel e Almas. Ao som do grande sucesso, “Se acaso você chegasse”, o jornalista Paulo Santana (1939-2017), sob os aplausos da multidão, começou a cantar, emocionando todos os presentes.

Transcorridos 43 anos, a história se repetiu, em julho de 2017, porém o cenário foi o funeral do colunista da Zero Hora, Paulo Santana, um fã incondicional de Lupi e um fanático torcedor do Grêmio. O eterno sucesso “Felicidade” e o “Hino do Grêmio” invadiram as galerias do cemitério João XXIII num misto de saudade e de reencontro feliz de dois amigos: o primeiro um ícone da música; o segundo, do jornalismo.

As lembranças vividas com Lourdes Rodrigues (1938-2014), Zilá Machado (1928-2011), Alcides Gonçalves (1908-1987), Orlando “Johnson” Silva (1910-1995), entre outros amigos, e as noites de boemia, no Bar Adelaide’s, ficaram na memória de quem compartilhou a sua amizade. Lupicínio Rodrigues partiu deste mundo, aos 59 anos, num dia chuvoso. A Chuva era como as lágrimas de todos os amantes, que passaram a existência em busca do verdadeiro amor….

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Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é jornalista e coordenador do setor de imprensa do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa

 

Bibliografia

CAMPOS, Marcelo. Almanaque do LUPI. Porto Alegre: Editora da Cidade/ Letra & Vida, 2014.
GONZALEZ, Demósthenes. Roteiro de um boêmio: vida e obra de Lupicínio Rodrigues – crônicas. Porto Alegre, Edit. Sulina, 1986.
OLIVEIRA, Márcia Ramos de, Lupicínio Rodrigues: a cidade, a música, os amigos. Dissertação de Mestrado /PPG em História / UFRGS, 1995.
———————– Uma leitura histórica da produção musical de Lupicínio Rodrigues. Tese de Doutorado/PPG em História / UFRGS, 2002.