Com as redações cada vez mais enxutas, seria ingênuo imaginar manter um jornalista por empresa para escrever sobre personagens marcantes da cultura brasileira.
Cinema, artes plásticas, música, fotografia, dança, escultura, literatura, teatro, gravura, desenho, poesia, arte de rua, enfim, seja qual for o ramo, vivem e já viveram neste país artistas geniais que estão fadados ao esquecimento. Muitos dos quais reconhecidos internacionalmente.
Jornalistas, geralmente, são os primeiros a criticar que o povo desconhece nossa cultura.
São tantos os casos de corrupção que merecem destaque, mais a tragédia evitável da vez, que as pautas não chegam a considerar, por exemplo, Heitor Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, Cartola, Pixinguinha, Tom Jobim – há quem não tenha a menor ideia de quem foi Tom Jobim –, Nelson Pereira dos Santos, Mário Zan, Nelson Rodrigues, Aracy de Almeida e Noel Rosa, entre uma infinidade de outros.
O portal Observatório da Imprensa, respeitado veículo que tem como missão refletir sobre nossa atividade nos jornais impressos que ainda restam, sites, revistas eletrônicas, televisões ou rádios, poderia dar o exemplo e abrir uma editoria específica – Memória.
Certamente, há jornalistas que adorariam escrever.
Ao sepultarmos nossa história, colaboramos para enterrar também os antológicos cadernos de cultura que brilharam nos jornais impressos desse país. Havia leitores que compravam jornais aos domingos especificamente para ler o Caderno B.
Quem sabe assim, histórias como a seguir, do cineasta Mazzaropi, um gênio praticamente desconhecido pelas atuais gerações, poderiam ser replicadas, via Observatório da Imprensa, em veículos de comunicação em todo país. Com os devidos créditos, evidentemente, do autor do artigo e do site.
Ator, Amácio Mazzaropi conseguiu no cinema o mesmo feito extraordinário que Cândido Portinari na pintura e Luiz Gonzaga na música.
Eles mostraram o Brasil da roça, do cachorro magro, da lamparina, da sabedoria do analfabeto, do casal empanturrado de filhos, da terra vermelha batida, um país repleto de contradições, abandono e riquezas.
Portinari e Gonzaga expuseram o Brasil profundo, as festas populares, a religiosidade, o tocador cego de zabumba, o ritmista franzino do triângulo, a fé dos desamparados, as paisagens áridas, as injustiças sociais.
O sanfoneiro mostrou o Nordeste como ele era pela primeira vez ao Brasil.
Portinari eternizou os retirantes famélicos e trabalhadores rurais explorados no interior paulista.
Enquanto Portinari e Gonzaga revelaram, muitas vezes, o migrante entregue à própria sorte, Mazzaropi colocou nas telas dos cinemas a figura do brasileiro sem maldade, pressa, desconfiado e praticamente impossível de ser passado para trás.
Além de ator, ele foi diretor, cineasta, produtor, roteirista, cantor e humorista. Um artista completo.
O Brasil de Mazzaropi era do milho, do queijo fresco, do café torrado em casa e servido na caneca esmaltada, feito no fogão a lenha na casinha de taipa com rede na varanda e piso de terra batida. O Brasil acanhado do cigarrinho de palha, da contemplação da natureza e da solidão como companhia.
Da carne conservada na lata com banha de porco, do grilo que canta no silêncio da noite e da roupa quarando no varal.
Mazzaropi eternizou o Brasil tropeiro, que ia a cavalo ao armazém. O país da pesca com vara fina de bambu, da benzedeira, do papagaio que chamava o dono pelo nome, do sapo-cururu, do rádio de pilha, do parto no quarto do casal, do pé de goiaba, da água de poço, dos porcos e galinhas nos fundos da tapera, da cera de vela escorrida e colada no vidro do copo.
Quem foi adolescente na década de oitenta teve o privilégio de assistir filmes roteirizados com emoção e simplicidade por Mazzaropi.
Os dias da semana eram contados regressivamente até chegar domingo com suas matinês às duas da tarde.
Geralmente, os longas-metragens eram intercalados, domingo sim, domingo não, entre faroestes americanos e os nacionais estrelados pelo caipira predileto.
Ele encantou milhares de crianças e adolescentes que lotavam cinemas para assistir suas produções.
Mazzaropi mostrou que o brasileiro nato tinha pele oleosa, cabelos escuros, olhos castanhos, estatura baixa ou, com sorte, mediana. É fruto da miscigenação entre índios, negros, mulatos e portugueses que aqui chegaram para fugir da justiça ou da miséria que amargavam em Portugal.
Nosso herói Mazzaropi era um pouco de cada um. Naturalmente engraçado no jeito de andar, olhar, falar e lidar com os problemas que encontrava pelo caminho.
Hollywood, por sua vez, nos fazia sentir de outro planeta, se nos comparássemos a Robert Redford e Katharine Ross.
A clássica cena do passeio de bicicleta do casal no filme Butch Cassidy & Sundance Kid, com a música Raindrops Keep Falling On My Head, nos projetava a algo muito além da palpabilidade.
Nossa pele era oleosa, tínhamos majoritariamente olhos e cabelos castanhos, éramos baixinhos ou, com um pouco de sorte, estatura mediana.
Fazendo rir, Mazzaropi nos ajudou a compreender nossa cultura, linhagem e origem.
A indústria americana do cinema impunha um padrão de beleza que dividia o mundo entre eles e o resto, no sentido literal da palavra.
Robert Redford, o galã da época, loiro, jovem, olhos azuis. Katharine Ross no auge da beleza, olhos verdes, pele clara, cabelos castanhos de propaganda de shampoo, sorriso largo.
Mazzaropi era a antítese de Clark Gable, o bonitão do cinema americano que serviu de inspiração para a criação do personagem Clark Kent, o Super-Homem.
Mazzaropi se inspirou no Jeca Tatu de Monteiro Lobato, o caipira abandonado pelo poder público, sem acesso à saúde, analfabeto de pai e mãe, menosprezado, ridicularizado e explorado por políticos.
Criador e criatura, Mazzaropi estava para Amácio Mazzaropi da mesma forma que Carlitos para Charles Chaplin.
Ambos viveram para emocionar nas telas dos cinemas.
Se alguém perguntar para os jovens atuais quem foi Mazzaropi, dificilmente vai encontrar quem saiba responder.
Um dos problemas de um país como o nosso desprezar rigorosamente a própria memória é que os artistas que fazem sucesso hoje serão impiedosamente os anônimos de amanhã.
O outro é que nunca deixaremos a condição de Jeca Tatu.
Serviço:
Acesse e conheça o Museu Mazzaropi em Taubaté: www.museumazzaropi.org.br
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Paulo Renato Coelho Netto é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”.