Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Morreu um filósofo romântico

O Brasil demora a traduzir obras fundamentais em todas as áreas do conhecimento, mas em algumas apresenta gloriosas exceções.

Este ano, o Prêmio Nobel de Literatura, concedido pela décima vez a uma escritora, a austríaca Elfriede Jelinek, pegou todos desprevenidos, principalmente os editores brasileiros. Que se penitenciem na viagem de volta da maior feira de livros do mundo, a de Frankfurt, e aperfeiçoem os critérios de ida e vinda que todas as feiras devem ter, e não o que vigora há décadas, com as poucas exceções de praxe.

Nossos editores, em sua maioria, vão lá para comprar, não para vender. E tropeçam nos dois caminhos. Eles têm o que vender, mas não oferecem. E feira vem, feira vai, ninguém muda nada, sob a cumplicidade inerte e submissa do Estado, que não intervém onde ele é sempre bem-vindo: apoiando atividades culturais, sem exigir subserviência.

Vários são os editores brasileiros que trazem obras sem importância, apresentadas aqui como exemplos das fronteiras que o livro atingiu, e lá fora submetem-se ao jugo horroroso que vê o Brasil com olhos deformados, considerando-o país que só pode ganhar realce em livros de denúncia, de como aqui somos um povo mixuruca.

E levam daqui para o mundo autores menores que, por conveniência mercadológica, há tempos entraram no jogo perverso, isto é, o de concordar em que não podem produzir letras de alta categoria, que de nós o mundo espera outra coisa, bem diferente da vertiginosa aventura de linguagem que é toda boa literatura. Pois os velhinhos da academia sueca premiaram a austríaca com os seguintes critérios: ‘Reconhecimento a seu extraordinário entusiasmo estilístico que revela o absurdo dos clichês na sociedade e por sua corrente musical de vozes e contravozes’.

‘Missão francesa’

Mas, vejamos que doce é este registro, o pensamento de Jacques Derrida, arrebatador, desarrumado e polêmico, era conhecido dos brasileiros há décadas. Quem está por volta dos 50 anos e fez curso superior, sobretudo se nas chamadas Humanidades, leu o mestre ou tomou conhecimento de suas complexas e fascinantes teorias. Quem tem menos de meio século de existência, entretanto, corre o risco de ter lido fragmentos de Derrida, provavelmente transcritos de cópias pirateadas nos campi – pois, como se Jean-Claude Passeron e Pierre Bourdieu tivessem escrito, não sobre a reprodução social que o ensino faz, mas sobre a reprodução ilegal de capítulos de livros, poucos conhecem hoje o pensamento de um autor.

O filósofo – que, à semelhança de seu colega Michel Foucault, escrevia como se fora prosa de ficção e não complexa filosofia o que exarava, tais os sabores de seus saberes – constatou isso na viagem que fez ao Brasil.

Um de seus editores brasileiros, Angel Bojadsen, da Estação Liberdade, lembrou no Estado de S.Paulo (11/10/04, Caderno 2, pág. D-5), que os leitores do filósofo tinham envelhecido: em recente viagem ao Rio, professoras beirando os 50 anos de idade eram maioria no almoço oferecido ao filósofo no consulado francês.

Foi do Estadão a melhor cobertura brasileira. Transcreveu e traduziu artigo do The Times com um título que não poderia resumir melhor o projeto de Derrida (‘Derrida redimensionou o estudo literário / Filósofo que descontruía e que morreu sábado, aos 74 anos, foi um grande pensador do século 20): ele realmente redimensionou o estudo literário. Aliás, os grandes companheiros de travessia fizeram esplêndidas incursões à literatura. Os ‘pensadores de 1968’ que mais se destacaram, além dele, foram Foucault, Barthes, Deleuze, Lacan e Althusser. Compuseram uma verdadeira missão francesa, pois foram lidos e entendidos no Brasil.

Pequenas e médias

Jacques Derrida nasceu em El-Biar, na Argélia, em 1930, dia 15 de julho. Aos 19 anos estava em Paris para estudar na famosa Escola Normal Superior, mas só seria ali admitido três anos depois. Viveu numa Argélia conflagrada pela guerra e pela colonização. Sabemos pouco de sua biografia porque entre nós este é um gênero serôdio, que pena!

Morreu em Paris num tempo em que, não apenas todas as metrópoles do orbe, mas o mundo inteiro, vive o trauma do 11 de Setembro, sobre o qual também o olhar de Derrida era original: ele afirmou repetidas vezes que a destruição das torres gêmeas não fora um ato terrorista nem tampouco um ato de guerra.

Ao contrário do que acontece com a obra de Elfriede Jelinek, ausente de nossas livrarias e de nossas editoras, a de Derrida está disponível em várias editoras e livrarias. Só não lê quem não quer. Registre-se que nenhuma das grandes editoras tem qualquer obra sua. Todos os seus livros foram publicados por pequenas ou médias editoras, incluindo a da UFMG, indispensáveis ao aspecto plural e democrático que o mercado editorial deve ter em todo o mundo.