Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Na fronteira da genialidade e da loucura: Lima Barreto

“Nãolimabarreto é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa.” (Lima Barreto)

 

Há 136 anos, numa sexta-feira, em 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro, nascia Afonso Henriques Lima Barreto. Filho de descendentes de escravos, seu pai João Henriques de Lima Barreto era tipógrafo da Imprensa Nacional e sua mãe Amália Augusta, professora primária. O casal teve quatro filhos. Ao completar sete anos de idade, o futuro escritor e jornalista ficou órfão da figura materna, que o introduziu no universo das letras. Lima Barreto estudou no Liceu Popular de Niterói.

Ao perder o emprego, o pai passou a trabalhar como almoxarife numa colônia de alienados na Ilha do Governador (RJ). A nova atividade fez com que a família se mudasse para uma casa que se localizava dentro da área do hospício, onde lá permaneceu por quase dez anos.

Seu pai, diante das dificuldades econômicas, contou com o apoio de Afonso Celso de Assis Figueiredo (1836-1912) – visconde de Ouro Pedro – que era padrinho de Lima Barreto. Este viabilizou, com o seu prestígio político, o ingresso do menino no conceituado Colégio Pedro II onde se bacharelou em Ciências e Letras. No ano de 1897, Lima Barreto passou a frequentar o curso de Engenharia da Escola Politécnica, que não foi concluído. Nesta escola, ele era o único aluno negro.

O funcionário público

A vida seguia seu curso normal, quando, em 1902, Lima Barreto se deparou com o inesperado: a loucura de seu pai e a responsabilidade de assumir o sustento da família.  Embora os problemas enfrentados, ele estreou, naquele ano, na imprensa estudantil, escrevendo artigos críticos na revista universitária A Lanterna, não poupando os colegas e os vaidosos professores. Na capital do Império, candidatou-se, em 1903, a uma única vaga na Secretária de Guerra num concurso público, obtendo 2ª lugar. Devido à desistência do candidato concorrente, assumiu o cargo, aos 22 anos, recebendo, como copista, um modesto honorário.

Surge o  romancista

Empregado, ele se mudou, em 1904, para o bairro Todos os Santos no Rio de Janeiro. Em sua nova residência, número 32, da Rua Major Mascarenhas, começou a escrever a primeira versão do seu romance “Clara dos Anjos”, tratando, com preciosismo, questões socioeconômicas ligadas à escravidão no Brasil. Fato curioso é que Lima Barreto nasceu, no dia 13 de maio, sete anos antes da Abolição da Escravatura (1888), cuja data tornar-se-ia uma efeméride alusiva à assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel.

O livro “Clara dos Anjos” foi concluído entre os anos de 1920 e 1922.  Lima Barreto não chegou a vê-lo publicado, pois foi editado somente em 1948. A obra, na realidade, diferencia-se do seu esboço original.  O próprio autor assim declarou: “Saiu coisa bem diferente, se bem que o fundo seja o mesmo”. Em suas duas versões, a protagonista Clara é vítima da sua condição de mulher negra e pobre.  Na realidade, o cerne da trama permaneceu inalterado: trata-se da estória de uma jovem mulata que se envolve, amorosamente, com um rapaz branco e de condição socioeconômica superior, que se recusa a contrair matrimônio, para consertar o “malfeito”.

O crítico mordaz e a imprensa

recordaçoes

Colaborador na famosa revista Fon-Fon (1907-1958), Lima Barreto fundou também, com amigos, em 1907, a revista Floreal. Embora tenha circulado apenas quatro edições desta revista, ela acabou por despertar atenção do crítico literário José Veríssimo (1857-1916). Nela, ele começou a escrever o folhetim “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, editado, na forma de livro, em 1909, pela Livraria Clássica Editora. No primeiro capítulo, há uma nota autobiográfica, conferindo um tom de pessoalidade no trato de questões relativas à etnia negra e à classe social.

O romance que polemizou

Em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, estão presentes os percalços, os preconceitos sociais e étnicos, que são vivenciados, pelo personagem, na busca de sua ascensão profissional na carreira jornalística. O protagonista, um afrodescendente, após diversas dificuldades, consegue um emprego de escrivão de um jornal, porém só é promovido por ter descoberto, em uma noitada de orgia, seu chefe e sua amante. Com esta publicação, Lima Barreto se tornou “persona non grata” em relação a outros grandes jornais do Rio de Janeiro, principalmente do Correio da Manhã (1901-1974).

No livro, este jornal assume o título fictício de “O Globo”. Curiosamente, mais tarde, Irineu Marinho (1876-1925) fundou, em 1925, no Rio de Janeiro, um jornal com o mesmo título, que completa, em 2017, os seus longevos 92 anos de fundação.

De acordo com a historiadora Lila Schwarcz, que lançará, em junho de 2017, uma biografia de Lima Barreto, ele foi um crítico implacável em relação ao jornalismo da sua época. O trecho da pág. 92, do livro, ratifica a opinião da historiadora:

     “A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba-Roxa ressuscitasse […] só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista…”

Embora o conflito que se estabeleceu, Lima Barreto havia realizado uma série de reportagens no importante Correio da Manhã.  Nele, a obra ”O Subterrâneo do Morro do Castelo” foi originalmente publicada, em 1905, sendo o livro editado somente em 1997. Na realidade, devido às críticas presentes em “Memórias do Escrivão Isaías Caminha”, os donos dos importantes periódicos do Rio de Janeiro, passaram a ignorar a figura de Lima Barreto. Ainda neste período, ele começou a escrever o romance “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”, trazido a público somente em 1919.

Frequentador assíduo da Biblioteca Nacional, nosso escritor passou a dedicar-se, de forma intensa, à leitura dos clássicos da literatura mundial, assim como dos escritores da sua época, a exemplo de João do Rio (1881-1921) e Machado de Assis (1939-1908), Olavo Bilac (1865-1918) e Coelho Neto (1864-1934). Em relação ao primeiro escritor, devido às contundentes críticas presentes em “Recordações do Escrivão Isaías”, este acabou divergindo de Lima Barreto. Quanto a Coelho Neto, ele criticou o estilo literário do mesmo, afirmando: não posso compreender que a literatura consista no culto ao dicionário.” Também discordava dele quanto à paixão pelo futebol, pois, na época, tinha um caráter racista e excludente.

Em 1910, ano em que o cometa Halley cruzou os céus novamente, Lima Barreto fez parte do Júri, no caso “Primavera de Sangue”, e acusou os militares de participarem do assassinato de um estudante. Os responsáveis não foram condenados, A partir deste episódio, nosso escritor teve todas as suas promoções, na Secretaria de Guerra, inviabilizadas.

A contribuição literária nos periódicos da época

Um ano depois, em 1911 num período de apenas três meses, Lima Barreto escreveu uma das obras mais importantes da sua trajetória literária: “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Impresso, como folhetim, no Jornal do Commercio (1827-2016), o livro foi lançado, em 1915, conforme comentou, no discorrer deste texto, por uma questão cronológica.

Na Gazeta da Tarde (1880 -1887), Lima Barreto publicou, em 28 de abril de 1911, seu famoso conto “O homem que sabia Javanês”. O protagonista, o malandro Castelo, afirma ser um grande estudioso do idioma javanês quando, na realidade, trata-se de um grande engodo. Usando deste artifício, o personagem consegue enganar boa parte da sociedade carioca da época, visando à sua ascensão na carreira política, na vida acadêmica e diplomática. Mais tarde, publicou-se uma coletânea, que, além deste conto, reuniu mais quatro títulos do autor: “’Um especialista”, “A nova Califórnia”, “Miss Edith e seu tio” e “Como o homem chegou”.

Em 1911, na Gazeta da Tarde (1880 -1887), Lima Barreto registrou o que ficou gravado na sua retina, quando, aos sete anos, assistiu a uma missa campal, em alusão a Abolição da Escravatura (1888), em companhia de seu pai. Segue um trecho:

“(…) fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folgança e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente de festa e harmonia”.

 Lima Barreto sempre buscou, durante a sua existência, vivenciar a harmonia daquela tarde de 1888, constituindo-se esta, em sua visão, a essência de uma autêntica esperança de uma convivência mais justa e fraterna.

Excelente cronista de costumes do Rio de Janeiro, Lima Barreto também colaborou para diversas e importantes revistas literárias, como “Careta” (1908-1960), “Fon-Fon” (1907-1958) e “O Malho” (1902-1954).

O alcoolismo

No ano seguinte, em 1912, Lima Barreto publicou dois fascículos das “Aventuras do Dr Bogóloff” e dois livretos de humor, um deles na revista “O Riso” (1911-1912). Infelizmente, neste período, nosso escritor passou a ter sérios problemas com o alcoolismo, porém seguia colaborando na imprensa.  Sofrendo de alucinações, entre agosto e outubro de 1914, foi internado no Hospital Nacional dos Alienados.

Em 1915, o jornal A Noite (1911-1957) publicou, na forma de folhetim, a sátira política “Numa e a Ninfa”. Neste período, Lima Barreto iniciou uma longa participação, principalmente, entre 1919 e 1922, na famosa revista carioca Careta (1908-1960), na qual colaborou com artigos sobre os mais variados assuntos, predominando os de teor político.

Triste Fim de Policarpo Quaresma

polycarpo

Depois de ter sido publicado, em folhetim, “Triste Fim de Policarpo Quaresma” é lançado, em 1915, na forma de livro, pela Editora Typ. “Revista dos Tribunaes”.  Lima Barreto, nesse período, teve que recorrer a empréstimos financeiros para publicá-lo. Este clássico da nossa literatura situa-se na transição de dois períodos literários: o Realismo e o Pré-Modernismo. Com a objetividade, na forma de escrever, e o uso de um racionalismo, que se expressa por meio da realidade, a obra é retratada sem as idealizações românticas.

O personagem principal, o Major Policarpo Quaresma, foi chamado, pelo intelectual Alfredo Bosi, de o grande “Dom Quixote” nacional. (BOSI, 2006, p. 318). Trata-se, na realidade, de um personagem absorvido pelo sentimento nacionalista dos primeiros anos da República Velha (1889 -1930).

O livro, em síntese, é uma narrativa dos ideais e frustrações do funcionário público Policarpo Quaresma. Homem metódico, nacionalista fanático e sonhador, Policarpo se dedica ao estudo das riquezas do Brasil, valorizando a cultura popular, a fauna, flora e a hidrografia.  Entre outras atitudes, de extremo ufanismo do protagonista, ocorreu quando este sugeriu a substituição do idioma Português – nossa língua oficial – pelo Tupi-Guarani. As atitudes de Policarpo foram julgadas como bizarras e doentias, resultando em sua internação. Segue um trecho do livro, no qual Policarpo propõe a mudança da nossa língua oficial:

(…) “Demais, Senhores Congressistas, o tupi-guarani, língua originalíssima, aglutinante, é verdade, mas a que o polissintetismo dá múltiplas feições de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por sua criação de povos que aqui viveram e ainda vivem” (…)

Durante a narrativa – presente na obra- cresce o abismo entre as questões ideológicas, sustentadas pelo personagem, e o mundo real que é retratado pelo autor. Narrada na terceira pessoa, a obra “Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi adaptada para o cinema, tendo como ator principal o gaúcho Paulo José. Lançado em 1998, o roteiro é de Alcione Araújo e a direção de Paulo Thiago. O filme “Policarpo Quaresma, Herói do Brasil”. apresenta, com muito humor, trechos importantes da obra de Lima Barreto, como Policarpo se deitando de bruços na relva, para fazer sexo, com sua terra, tal a dimensão surreal do seu nacionalismo.

Na forma de quadrinhos, a obra “Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi lançada, em 2013, visando a uma leitura compreensível, pelo público juvenil, na fase escolar. Edgar Vasquez e Flávio Braga foram os responsáveis por transformá-la em quadrinhos.

Lima Barreto, sempre mergulhado no mundo das ideias e preocupado com as questões sociopolíticas, passou a escrever no semanário político ABC. Em julho de 1917, passou às mãos do editor, J. Ribeiro dos Santos, os originais do satírico “Os Bruzundangas”, que foi publicado somente, em 1922, um mês após a sua morte. Neste livro, o autor registra os laços de nepotismo, corrupção e a sonegação de impostos que estão presentes de forma exacerbada na Primeira República (1889-1930).

A negativa da Academia Brasileira de Letras (ABL)

Diante da sua intensa produção literária, nosso escritor se candidatou à vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL), porém o seu pedido de inscrição não foi sequer avaliado. Lima Barreto, embora muito aborrecido, seguiu o seu caminho na literatura, lançando a 2ª edição de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” e, na forma de livro, o folhetim “Numa e a Ninfa”. Lima Barreto, neste período, passou a colaborar, com suas crônicas, na imprensa alternativa da época, tendo escrito para os jornais: A Lanterna, ABC e Brás Cubas.

Ao final de 1918 e início de 1919, Lima Barreto permaneceu internado no Hospital Central do Exército devido às contusões sofridas durante alucinações alcoólicas. Aposentado, em dezembro de 1918, por meio de decreto presidencial.

Neste ínterim, devido a um artigo crítico à etnia negra, deixou de colaborar no semanário político ABC. Neste período, também colocou à venda o romance, que havia  começado a escrever há 10 anos: trata-se de “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”. Revisto por ele mesmo e mandado datilografar pelo editor Monteiro Lobato (1882-1948), este foi o único de seus livros a observar tais cuidados. Esta obra recebeu aplausos de intelectuais importantes, como João Ribeiro (1860-1934) e Alceu Amoroso Lima (1883- 1983). Neste livro, o Rio de Janeiro se configura numa entidade com vida própria, que se autoconsome num eterno confronto existencial entre o antigo e o novo.

Com o retorno tão positivo, em relação a sua produção literária, Lima Barreto se  candidatou, pela segunda vez, à vaga, na Academia Brasileira de Letras, (ABL) deixada por João do Rio (1881-1921), que havia se afastado em virtude de desentendimentos com o poeta Humberto de Campos (1886-1934). Desta vez, sua candidatura foi aceita, porém não conseguiu ser eleito.

Infelizmente, o fantasma do alcoolismo e da depressão continuava a assombrar o nosso escritor. Certa vez, Monteiro Lobato se deparou com Lima Barreto, totalmente, embriagado e maltrapilho, optando, então, por não cumprimentá-lo, evitando o constrangimento diante daquela situação.

A doença se agrava

o cemitério dos vivos

Em 1919, vivenciando uma forte crise nervosa, ele foi internado, pela segunda vez, no Hospital Nacional dos Alienados, Esta sofrida experiência resultou em anotações, que deram origem aos primeiros capítulos do livro “Cemitério dos Vivos”, no qual está presente o universo cruel e desolador de um hospício, marcado pelo espectro da loucura.    Autobiográfico, o livro nos apresenta o autor revoltado com injustiças e preconceitos que sofria por meio do narrador-protagonista, Vicente Mascarenhas, cuja existência, como a do autor, foi pontilhada por tragédias pessoais. Póstuma, esta obra foi publicada, na íntegra, somente em 1956.

Lima Barreto, em “Cemitério dos Vivos”, tornou público o cotidiano de um hospício, criticando o seu sistema anacrônico e carcerário ao tratar seus internos. Segue dois pequenos trechos desta magnífica e vanguarda obra:

  “Muitas causas influíram para que eu viesse a beber, mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente.” (,,,)“Choques morais, deficiência de inteligência, educação, instrução, vícios, todas essas causas determinam formas variadas e desencontradas de loucura; e, às vezes, nenhuma delas o é”.

No ano de 1920, o seu livro “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” concorreu ao prêmio da Academia Brasileira de Letra (ABL) de melhor livro publicado no ano de 1919 e ganhou uma menção honrosa. Ainda no mesmo ano, as livrarias passaram a vender o seu livro de contos “Histórias e Sonhos”, e Lima Barreto entregou ao seu amigo e editor, F. Schettino, os originais de Marginália, que constavam de artigos e crônicas publicados na imprensa da época. Esta coletânea foi editada em 1953.

Em seu “Diário Íntimo” (1903-1821), que foi também, postumamente, publicada a primeira edição, em 1953, o autor nos traz um relato humano pontuado pelo sofrimento e por uma incisiva denúncia de racismo.  Nele, Lima Barreto nos deixou registrado: “É difícil não nascer branco” / “a raça para os brancos é conceito, para os negros pré-conceito.” Segue um breve, trecho, no qual o autor declara a sua propensão ao suicídio:

   “Desde menino, eu tenho a mania do suicídio. Aos sete anos, logo após a morte de minha mãe, quando fui acusado de furto tive vontade de me matar.”

Em janeiro de 1921, “Cemitério dos Vivos” teve um trecho publicado, na Revista Souza Cruz (1916-1935), com o título “As origens”. Estas memórias manuscritas não foram concluídas por Lima Barreto. Em abril daquele ano, ele fez uma viagem à cidade de Mirassol, em São Paulo, onde o médico e amigo, Ranulfo Prata, tentou, sem êxito, recuperar a frágil saúde do nosso escritor.

Retornando ao Rio de Janeiro, ele se reclusou em sua modesta casa em Todos os Santos, passando a receber apenas alguns amigos e a sua irmã Evangelina. Esta se desdobrou, em relação à saúde do irmão, com cuidados e dedicação integral.  Lima Barreto procurou reagir à doença, embora as internações e o estigma da loucura de seu pai. Uma das formas de lutar contra a doença era manter o hábito de passear pela sua amada cidade do Rio de Janeiro e, na privacidade, dedicar-se à leitura e à escrita.

Em julho de 1921, Lima Barreto, pela terceira vez, tentou o ingresso na Academia Brasileira de Letras (ABL) retirando, porém, a sua candidatura. Segundo o próprio autor, a atitude foi tomada “por motivos inteiramente particulares e íntimos”.

Nos últimos meses, que ainda lhe restavam, Lima Barreto entregou os originais de ‘ Bagatelas, que reuniu uma produção literária, no período de 1918 a 1922, destacando as agruras do nosso país e do mundo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Esta obra também póstuma foi publicada em 1923.

Na Revista Souza Cruz, de outubro /novembro de 1921, foi publicada a conferência  “O destino da literatura”, cuja apresentação Lima Barreto não conseguiu realizar na cidade de Rio Preto, em São Paulo, próxima a Mirassol. Em dezembro de 1921, ele iniciou a segunda versão de seu romance “Clara dos Anjos” – já comentado no texto – terminado no início de 1922.

No mês de maio de 1922, a revista “Mundo Literário” publicou o primeiro capítulo de “Clara dos Anjos”. Neste período, os originais de “Feiras e Mafuás”- uma coletânea de artigos e crônicas – foram entregues por Lima Barreto, visando à sua publicação, que ocorreu mais tarde , em 1953, pela Editora Mérito.

O Anarquista

Lima Barreto foi um dos poucos literatos brasileiros a se interessar pela literatura russa e ler com afinco seus autores. Após a Revolução Russa de 1917, ele se tornou anarquista. Nosso escritor foi um defensor dos animais, um crítico mordaz do academicismo e do feminismo. Quanto a este último, ele apontava falta da participação e inclusão das mulheres negras.

Ao se referir à sua “cor”, ele usava a expressão “pele cor de azeitona escura”, e tinha um olhar bastante crítico e desconfiado em relação à Lei Áurea (1888), deixando registrado em um diário: “liberdade era uma palavra que eu desconfiava e não confiava”.

Em resposta ao preconceito racial e à exclusão social sofrida, em seu cotidiano, nosso escritor escrevia sobre estes temas de forma contundente e mordaz.  De acordo com a historiadora e antropóloga, Lila Schwarcz, que, em junho de 2017, lançará uma biografia de Lima Barreto a sua intenção era de fato polemizar:

triste visionario

“Ele achava que os negros só poderiam ser socialmente integrados através da luta e do constante incômodo. Por isso, denunciava que a escravidão não acabou com a abolição, mas ficou enraizada nos menores costumes mais simples”.

Em sua obra, ele não aborda somente o centro do Rio de Janeiro, mas principalmente os subúrbios, os seus habitantes; descrevendo, com detalhes, as estações de trem, os transeuntes, as ruas, os bares, os costumes, as tradições populares, as violências e opressões, deixando, de lado, a elite burguesa.

Lima Barreto escreveu romances, sátiras, contos, crônicas e críticas, abordando as injustiças sociais presentes numa sociedade elitista e excludente.  Crítico feroz do regime oligárquico da República Velha (1889-1930), ele foi o elo de transição entre o Realismo e o Modernismo. Detentor de um estilo literário que divergia dos padrões da sua época, sua escrita era fluente, coloquial e despojada.

A morte do escritor e jornalista

Os problemas de saúde de Lima Barreto, ao longo dos anos, foram se agravando, pela presença do reumatismo, do alcoolismo, entre outros padecimentos. No dia 1º de novembro de 1922, aos 41 anos, ele faleceu devido a um colapso cardíaco.

Nosso escritor morreu no “Dia de Todos os Santos”, que, por ironia do destino, é o nome do bairro carioca onde ele viveu tantos anos. Junto ao seu corpo, foi encontrado um exemplar da “Revue dês Deux Mondes” que era a sua preferida. Dois dias após o seu falecimento, foi a vez de seu pai. Ambos se encontram sepultados, no Rio de Janeiro, no Cemitério João Batista, conforme o desejo de Lima Barreto.

Vários críticos literários consideram que Lima Barreto preparou o terreno para a vanguarda, representada, na Semana de Arte Moderna, de 1922, pelos escritores modernistas e suas propostas de transformação e de novos conceitos literários.

O trabalho literário de Lima Barreto foi recuperado, após duas décadas da sua morte, por seu biógrafo Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), que foi o responsável pela organização da obra completa do nosso escritor.  Os originais, que se constitui num belo acervo da sua intensa produção, foram comprados, em 1949, pela Biblioteca Nacional onde está preservado, atualmente, na Divisão de Manuscritos.  Lima Barreto escreveu 17 livros.

A obra do nosso escritor já esteve também, em vários momentos, presente no teatro: Triste Fim de Policarpo Quaresma (1978 /1994), “O homem que sabia Javanês (1986)”, “Cemitério dos Vivos” (1993) e “Estação Terminal” (2008).

Embora a invisibilidade e o preconceito presentes no transcorrer da sua existência, Lima Barreto, finalmente, assume o merecido lugar no panteão dos grandes nomes da literatura nacional, que, devido ao seu talento, aliado ao brilhantismo intelectual, há muito tempo, já deveria ter ocupado.

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Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador e Coordenador do setor de imprensa do Musecom.

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Bibliografia :

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2002.
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira em diálogo com outras literaturas. 3 ed. São Paulo, Atual editora, 2005.
ENGEL, Magali Gouveia. “Gênero e Política em Lima Barreto”. In: Cadernos Pagu. Nº 32 jun / 2009.
NOLASCO-FREIRE, Zelia. Lima Barreto: Imagem e Linguagem. Sâo Paulo: Annablume, 2005.
PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. Rio de Janeiro: Cátedra, 1976.

VÍDEO : Depoimento de um grande intelectual do movimento negro no Brasil : Joel Rufino dos Santos (1941-2015).

https://www.youtube.com/watch?v=e2mZHmSo_c4