“O pior mal é aquele ao qual nos acostumamos” (Jean-Paul Sartre, filósofo e escritor francês, 1905-1980)
Mais de meio século após o premier David Ben Gurion (1886-1973) anunciar ao mundo, em 23 de maio de 1960, que o oficial nazista Adolf Eichmann (1906-1962) – o responsável pela logística da chamada “solução final” que exterminou seis milhões de judeus na 2ª Grande Guerra – tinha sido localizado e já se encontrava em Israel para ser julgado, um personagem já falecido que ajudou a identificar o criminoso em Buenos Aires foi homenageado pela chancelaria israelense.
A cerimônia discreta, realizada em uma dependência da Daia (Delegação das Associações Israelitas Argentinas), ocorreu em 13 de agosto de 2012, e o então embaixador de Israel na Argentina, Daniel Gazit, já se despedindo do cargo, fez um agradecimento público à memória do imigrante alemão Lothar Hermann (1901-1974), que nos idos de 1950 se empenhou em alertar as autoridades alemãs e israelenses sobre a presença de Eichmann em solo argentino.
A homenagem a Hermann não seria cabível há alguns anos porque seu papel no processo da descoberta do criminoso de guerra não recebeu os holofotes da mídia. Em 1961, com Eichmann sendo julgado em Israel, ele chegou a ser confundido com o médico nazista Josef Mengele (1911-1979) – apelidado de “anjo da morte” por seus experimentos com seres humanos –, que se escondeu primeiro na Argentina e depois no Brasil. Hermann ficou detido por duas semanas na prisão de Coronel Suárez, cidade onde vivia, a 500 quilômetros da capital, até o mal-entendido ser desfeito.
Em 2009, com a publicação do livro Hunting Eichmann (Caçando Eichman:como um grupo de sobreviventes e uma agência de espionagem jovem capturou o nazista mais procurado do mundo, no título da edição brasileira), do jornalista americano Neal Bascom, o papel de Hermann na descoberta do fugitivo recebeu o devido espaço. De acordo com Bascom, Hermann foi ajudado pela filha Silvia no processo de identificação de Eichmann. Ambos viajaram dez horas de trem, de Coronel Suárez a Buenos Aires, onde a jovem de deslocou sozinha até a casa do nazista, no bairro de Olivos. Um ano após o encontro, preocupado com a segurança da filha, Hermann a envia aos Estados Unidos. Desde então, ela nunca mais retornou à Argentina e manteve o seu endereço em segredo.
Foco no Mossad
Assim como Hermann, houve outras pessoas que de alguma forma contribuíram para a operacionalidade da captura de Eichmann e que se mantiveram apagadas ao olhar nem sempre dimensional da mídia. Durante décadas, a curiosidade e o foco dos meios de comunicação estiveram voltados essencialmente para os agentes do Mossad (instituto, em hebraico), o serviço secreto israelense que respondeu diretamente pela retirada clandestina do nazista da Argentina. Para isso contribuiu largamente o êxito de uma ação ousada levada a efeito por membros de uma agência de inteligência sem o lastro e a importância de suas congêneres europeias e americana.
Consultora da exposição “Operação Final: A história da captura de Eichmann”, que ocupou por seis meses, em 2012, o Museu do Povo Judeu (Beit Hatfutsot – Casa da Diáspora), em Tel Aviv, a historiadora Neomi Izhar explica que o Mossad à época do sequestro de Eichmann era uma organização pequena, estabelecida em 1949, carente de recursos e de experiência. “Capturar criminosos nazistas não estava no topo da agenda do Estado de Israel em seus primeiros dias porque o país estava ocupado em se recuperar da guerra da Independência, se estabelecer economicamente e absorver a grande leva de imigração, principalmente de sobreviventes do holocausto”, assinala.
A mostra idealizada sob os auspícios do Mossad reuniu mais de 100 documentos, registros, fotografias, vídeos e peças de equipamentos usados durante o processo de identificação e captura de Eichmann, até então sigilosos e jamais expostos em público. E também trouxe à luz 67 nomes, a maioria desconhecidos, de agentes e voluntários que se envolveram em uma empreitada inédita cujo maior resultado foi revelar às sociedades organizadas a tragédia do holocausto, ou shoah (catástrofe, aniquilação, em hebraico). “Em Nuremberg, na Alemanha, os criminosos nazistas foram julgados por crimes de guerra (1945-1946)”, lembra a historiadora. “Já o julgamento de Eichmann, em Israel (1961-1962), expôs ao mundo todos os horrores da máquina nazista.”
História incompleta
Por sua vez, o curador da exposição e representante do Mossad A. Avner admitiu que a listagem pode estar incompleta e que, surgindo novos nomes, estes serão acrescidos. “Toda a história da captura de Eichmann ainda precisa ser contada”, pondera. “A cada dia descobrimos novos detalhes da operação.” Um exemplo é o caso do general Yitzhak Elron, de 88 anos, que ao visitar a exposição revelou a Avner que participou da captura de Eichmann. Adido das Forças de Defesa de Israel na Argentina à época, Elron e sua esposa Sara faziam serviço de vigilância perto da casa de Eichmann, fingindo ser um casal de namorados.
Um fato que merece ressalva é que 70% dos envolvidos com a captura de Eichmann eram sobreviventes da shoah (N.R. termo iídiche para holocausto) , originários da Europa. Um dos personagens que tiveram papel relevante na denúncia de que o criminoso nazista vivia na Argentina sob o falso nome de “Ricardo Klement” foi um juiz alemão, Fritz Bauer (1903-1968), que por ser judeu fugiu da Alemanha quando Hitler assumiu o poder. Finda a guerra, ele retorna ao país e na década de 1960, investido na função de promotor-geral do estado de Hesse (1956), instala em Frankfurt o chamado “Julgamento de Auschwitz” que levou 22 ex-guardas daquele campo da morte para o banco dos réus.
Em 1957, atuando para que criminosos nazistas fossem localizados e levados a julgamentos, Bauer recebe a informação da presença de Eichmann em Buenos Aires através de Lothar Hermann, um alemão cego de um olho que vive na Argentina. Apesar de afirmar que era meio judeu, fugitivo do campo de concentração de Dachau e que ansiava por castigar Eichmann, sua própria filha Silvia, de mãe católica, desconhecia esses fatos. A jovem, de 14 anos, frequentava a comunidade alemã de Buenos Aires, no bairro de Olivos, e conheceu um dos filhos de Eichmann, Klaus, de 18 anos, em 1954. O rapaz, o mais velho de três irmãos, ostentava tranquilamente o sobrenome do pai e ainda se gabava dos feitos do nazista.
A persistência de Bauer em avisar diretamente às autoridades israelenses sobre o paradeiro de Eichmann foi essencial ao êxito da missão. O promotor alemão manteve contato com o diretor adjunto do Mossad, Shlomo Cohen Abarbanel (1921-1984), e a partir de 1959 acionou o procurador-geral de Israel, Haim Cohen (1911-2002), irmão de Shlomo (ambos nascidos na Alemanha), posteriormente alçado à presidência da Suprema Corte. Em 1961, Haim escusou-se de presidir o julgamento de Echmann, alegando ser contra a pena de morte. Eichman foi condenado por genocídio e crimes contra a humanidade, sendo enforcado na prisão de Ramla, perto de Tel Aviv, em 1º de junho de 1962. Foi a única vez que o governo de Israel aplicou a pena de morte.
Buscando nazistas
Outra figura importante nesse intricado enredo foi Tuviah Friedman (1922-2011), polonês que perdeu toda a família, à exceção de uma irmã, no campo de extermínio de Treblinka. Após a guerra, ele trabalhou em Viena com Simon Wiesenthal (1908-2005) e ajudou a capturar mais de 250 criminosos nazistas. Em 1952, ele instala em Haifa o instituto de documentação e investigação de crimes de guerra e prossegue em Israel o trabalho que realizava com Wiesenthal.
Na busca por Eichmann – que o levou até a cidade de Linz, na Áustria, onde o pai do ex-oficial tinha uma loja de artigos elétricos –, Friedman oferece, em 1958, uma recompensa de 10 mil dólares por pistas do paradeiro de Eichmann. Pouco tempo depois recebe uma carta de Lothar Hermann, da Argentina, o mesmo que já havia entrado em contato com Fritz Bauer, garantindo ter informações exatas e detalhadas sobre Eichmann. Friedman alerta as autoridades israelenses e repassa os dados obtidos através de sua correspondência com Hermann.
Dois anos depois, com Eichmann preso em Israel e sem ter os 10 mil dólares para pagar pelas informações que se comprovaram verdadeiras, Friedman apela ao governo israelense que somente faz o repasse da quantia a Hermann em 1971, na administração da primeira-ministra Golda Meir (1898-1978). Em seu livro de memórias, The Hunter (O Caçador), publicado em 1961, Friedman conta que pesquisou milhares de documentos e entrevistou centenas de sobreviventes atrás do paradeiro de Eichmann. Mas a imagem do nazista só se materializou quando uma foto foi confiscada da casa de uma antiga namorada de Eichmann.
Identidades sob sigilo
À frente da operação de captura de Eichmann, o diretor do Mossad Isser Harel (1912-2003), que chefiou a agência de 1953 a 1963, também sentiu a necessidade de narrar a sua experiência na coordenação da prisão de um dos nazistas mais procurados da história. Em 1975, lança o livro The House on Garibaldi Street (A Casa da rua Garibaldi), em alusão à rua onde Eichmann morava com a família, na ocasião de seu sequestro, na cidade de San Fernando, a 30 quilômetros de Buenos Aires. Apesar de ter escrito o livro em 1965, somente dez anos depois recebe o aval do governo israelense para publicá-lo (em 1979, a TV americana exibiu o filme A captura do carrasco, com os atores Topol e Martin Balsam, baseado no livro de Harel).
Traduzida em mais de 20 idiomas, a primeira edição do livro omitiu os verdadeiros nomes dos agentes que participaram da missão. Por uma questão de segurança, Harel recorreu a pseudônimos. Em 1997, em nova edição, o autor revela os nomes dos agentes israelenses e dos voluntários latino-americanos da operação, citando ainda o juiz alemão Fritz Bauer e sua fonte, Lothar Hermann, ambos à época, já falecidos. Logo na primeira página, Harel fixa a data de 1957 como o marco inicial de sua jornada, quando é informado pelo diretor-geral do ministério de Relações Exteriores, Walter Eithan, que Adolf Eichmann, desaparecido desde 1945, está na Argentina e que seu endereço é conhecido.
Também em 1997, mais detalhes sobre a preparação e execução do sequestro de Eichmann são revelados no livro Operation Eichmann: Pursuit and Capture (Operação Eichmann: Perseguição e Captura), escrito por Zvi Aharoni (1921-2012), agente do Shin Bet (o serviço de segurança de Israel), em parceria com o jornalista alemão Wilhelm Dietl. Especialista em interrogatórios, Aharoni nasceu em Frankfurt e seu nome original era Hermann Arendt. Enviado à Argentina em março de 1960 para localizar e identificar Eichmann, coube a ele – integrante de um grupo de seis agentes comandado por Rafi Eitan, de 88 anos – dirigir o carro que conduziu Eichmann ao local em que ficaria detido por nove dias antes de ser transportado clandestinamente a Israel em um avião da companhia aérea israelense El Al.
Vivendo na Inglaterra desde 1988, Aharoni contou ao correspondente Avner Avrahami, do jornal israelense Haaretz (2010), que Harel, no duplo comando do Mossad e do Shin Bet, estava decidido a encerrar o caso Eichmann por achar que os resultados não tinham sido conclusivos em relação às suspeitas de que “Ricardo Klement” seria o criminoso nazista. Mas, sob a pressão do procurador-geral Haim Cohen, que convocou uma reunião de urgência em Jerusalém, em dezembro de 1959, e o interesse manifestado pelo primeiro-ministro Ben Gurion, o assunto voltou a ser prioridade e Aharoni foi despachado para a Argentina. Vinte dias depois, ele retornava a Israel com a fotografia de Eichmann no quintal de sua nova casa, em San Fernando: um local isolado e ermo, bem diferente do bairro de Olivos, em Buenos Aires, onde o fugitivo residiu com a família por seis anos.
De frente para o carrasco
Faixa preta de judô e especialista em explosivos, o polonês Peter Z. Malkin perdeu grande parte de sua família no campo de extermínio de Auschwitz. Em maio de 1960, aos 33 anos, ele foi enviado pelo Mossad à Argentina para integrar a equipe incumbida de capturar Eichmann. Por muitos dias ele observou os hábitos e a rotina diária de Eichmann. Na noite do sequestro, Malkin aguardou o regresso do nazista da fábrica da Mercedez Benz, onde trabalhava, e o interceptou pessoalmente no trajeto para sua residência. No livro Eichmann in My Hands (Eichmann em minhas mãos), escrito em 1990, com a colaboração do jornalista americano Harry Stein, o agente revela que comprou um par de luvas para a abordagem: “Eu não ia usar as minhas mãos para tapar a boca de quem deu a ordem para assassinar a minha irmã, seus filhos e tanta gente”, justificou.
Ao longo dos nove dias em que Eichmann foi interrogado e permaneceu escondido sob a vigilância dos agentes do Mossad, aguardando o momento em que seria transferido para Israel, Malkin teve a oportunidade de ficar frente a frente com o carrasco e lhe dizer que o objetivo da missão era levá-lo a Jerusalém para ser julgado por suas ações. “Eu disse a Eichmann que não tínhamos nada contra a sua família e que poderíamos tê-lo matado com um tiro pela janela.” Malkin também presenciou situações curiosas. Segundo ele, Eichmann não demonstrava arrependimento e somente pedia desculpas, constrangido, cada vez que necessitava utilizar o banheiro. Também havia no grupo uma agente, Yehudit Nesiahu, de origem holandesa, que representava o papel de esposa para não despertar desconfiança nos vizinhos. Por ser muito religiosa, a comida era kasher (quando os alimentos são preparados de acordo com os preceitos judaicos). Malkin lembra que dizia para ela: “Por que você faz questão de que a comida seja kasher? A comida é para Eichmann.”
O livro, traduzido em 10 idiomas, foi dedicado a irmã Fruma, e virou filme, em 1996 – The Man Who Captured Eichmann (O homem que capturou Eichmann) –, com o ator Robert Duvall no papel de Adolf Eichmann. Durante muito tempo, Malkin manteve em segredo sua associação com o Mossad e a sua função de captor de Eichmann. Mas, em 1967, ele quebrou o silêncio no leito de morte de sua mãe. “Eu sussurrei para ela: ‘Mamãe, Fruma foi vingada’.” Malkin faleceu em Nova York em 2005, aos 77 anos.
Julgamento em Jerusalém
Preso em Israel, Eichmann foi interrogado por vários meses em sua cela pelo oficial da polícia Avner Less (1916-1987). Em 1983, Less publicou trechos dos interrogatórios no livro Eichmann Interrogated (Eichmann Interrogado), levado às telas de cinema em 2007 (Eichmann). Para a historiadora Déborah Lipstadt, que já presidiu o Museu do Holocausto de Washington, o filme inglês protagonizado pelo ator alemão Thomas Kretschmann minimiza o papel de Eichmann na shoah, ao editar e dramatizar extratos parciais dos interrogatórios. Atualmente, os interrogatórios podem ser consultados, na íntegra, nos arquivos israelenses.
A historiadora americana, autora do livro The Eichmann Trial (O Julgamento de Eichmann), de 2011, acompanha a vertente exploratória do jornalista Neal Bascom a respeito dos papéis decisivos desempenhados por Lothar Hermann, sua filha Sílvia, e do juiz Fritz Bauer na captura de Eichmann. Lipstadt escreve que contrariando a ideia geral de que o criminoso de guerra foi descoberto por caçadores profissionais de nazistas, a prisão de Eichmann ocorreu principalmente por conta da teimosia de um cego imigrante meio-judeu, da filha adolescente que não sabia de sua herança judaica, e do juiz alemão de Frankfurt que escondia o fato de ser judeu.
Professora de estudos sobre o holocausto na Universidade de Atlanta, Lipstadt acredita que a polícia secreta argentina tinha conhecimento de que um contingente de agentes israelenses havia chegado ao país e que poderia estar envolvido em alguma atividade secreta. Ela pondera que alguns dias depois do anúncio público de Ben Gurion sobre a captura de Eichmann, a revista Time publicou reportagem com riqueza de detalhes descrevendo toda a operação. “Os agentes policiais argentinos que acompanhavam de longe o sequestro e sabiam o lugar onde Eichmann estava escondido foram a fonte de informação da revista”, afirma. Para Lipstadt o governo da Argentina ficou até “feliz” com a ação dos israelenses de tirar Eichmann do país “com as próprias mãos”.
Entretanto, a historiadora observa que o avião da El Al levando Eichmann não parou em Recife para abastecer, conforme o plano oficial de voo. Isso porque o chefe do Mossad, Isser Harel temia que as autoridades argentinas pudessem avisar a polícia brasileira e o avião ficasse detido. A parada técnica ocorreu em Dacar, no Senegal, e dali o avião seguiu direto para o aeroporto de Lod, atual aeroporto internacional Ben Gurion, em Tel Aviv.
Vale lembrar que em 25 de maio de 1960 a Argentina comemorava os 150 anos de sua independência e que delegações oficiais de vários países, inclusive a de Israel, chefiada pelo chanceler Abba Eban, foram convidadas para as festividades, o que justificaria o deslocamento de agentes. No caso da equipe do Mossad, os agentes chegaram a Buenos Aires em voos diferentes e sob nomes falsos na última semana de março, dois meses antes das comemorações e 45 dias antes da captura. À meia-noite do dia 20 de maio, o mesmo avião da El Al que trouxe a delegação israelense, no primeiro voo da companhia à América do Sul, decolou com Eichmann a bordo, instalado na primeira classe, rumo a Israel.
Novos documentos
Em 2011, documentos confidenciais sobre o caso Eichmann foram autorizados para consulta após a Corte Federal de Leipzig permitir o exame de 3.400 páginas mantidas até então sob sigilo pelo serviço secreto da Alemanha (BND, sigla em alemão). O tribunal decidiu por atender à solicitação da jornalista alemã Gabriele (Gaby) Webber, correspondente em Buenos Aires, avaliando que a liberação de documentos dos anos 1950 e 1960 não traria danos à imagem e a política externa da Alemanha (100 páginas, porém, ainda permanecem secretas, por decisão lavrada em 2013 por uma Corte federal alemã). Nos EUA, em 2005, o serviço secreto americano (CIA) já havia tornado acessível ao público os documentos sobre Eichmann e outros criminosos nazistas.
Pesquisando nos arquivos alemães, Webber publica em 2013 o livro Los Expedientes Eichmann (Os documentos Eichmann) e garante, de forma surpreendente, que o carrasco nazista era um agente que fornecia informações para a Alemanha e Israel, semelhante a outros ex-oficiais do regime de Hitler que no pós-guerra transmitiram segredos militares e logísticos aos serviços secretos ocidentais.
Em entrevistas à Telam (agência nacional de notícias do governo da Argentina), em 15/01/2014, e ao jornal Clarín (30/04/2014), Webber sustenta que nunca houve uma caçada aos nazistas na Argentina e que os espiões da Alemanha e da Argentina sabiam, desde 1952, onde viviam e o que faziam Eichmann e seus amigos. Uma informação que a partir de 1958, segundo a jornalista, passou a ser compartilhada pelo Mossad, CIA e o KGB, o serviço secreto da antiga União Soviética. Ela chama a atenção para o fato de que apesar de os nazistas entrarem no país com nomes falsos, seus filhos mantiveram seus nomes verdadeiros, estudando e trabalhando normalmente.
Webber também questiona o silêncio de Eichmann durante o julgamento em Jerusalém quanto à presença de Hans Globke e de outros funcionários com passado nazista no alto escalão do governo do democrata-cristão Konrad Adenauer (1876-1967), destacando que a Alemanha mantinha importantes acordos políticos, tecnológicos e diplomáticos com Israel. Globke foi secretário de Estado de Adenauer (mandato de 1949 a 1963) e redator das leis raciais de Nuremberg, em 1935, que deram consistência legal à perseguição e expropriação de bens dos judeus na Alemanha e nos países invadidos pelas tropas de Hitler.
A jornalista raciocina que Eichmann ficou calado sobre assuntos correlatos que mesmo não estando em julgamento poderiam se tornar complicadores para as relações entre os dois países, se o réu se dispusesse a falar. Ela cita a cooperação nuclear entre Israel e a Alemanha para a construção de uma central atômica no deserto de Neguev; o acordo vigente desde 1952 para o pagamento reparatório de 3 bilhões de marcos (equivalentes a 1,5 bilhão de euros) aos sobreviventes da shoah (o regime nazista confiscou propriedades e bens de milhões de vítimas no maior roubo de um estado totalitário contra os seus cidadãos); e o papel dos nazistas na chamada guerra fria – período que vai de 1949 a 1991 – envolvendo espionagem e disputas estratégicas entre os EUA e a União Soviética.
Ressalte-se ainda que dez dias antes da chegada dos agentes do Mossad à Argentina, um encontro no Hotel Waldorf Astoria, em Nova York, em 14 de março de 1960, reuniu Ben Gurion e Adenauer, aparentemente para acertos de um empréstimo da Alemanha para o desenvolvimento de um reator nuclear na cidade de Dimona, no Neguev. O tema da reunião, todavia, permanece incerto devido à falta de um expediente administrativo registrado naquela data.
“O arquiteto do extermínio”
Contrapondo-se a algumas asserções formuladas pela jornalista alemã, o diretor do Centro Simon Wiesenthal (CSW) de Buenos Aires, Sergio Widder, assegura que Eichmann foi a pessoa encarregada de levar adiante o projeto de extermínio massificado e sistemático do povo judeu e em razão disso foi procurado, capturado e levado a julgamento em Jerusalém. “O programa de aniquilamento foi protocolado na conferência de Wannsee (bairro nos arredores de Berlim), em janeiro de 1942. Uma reunião onde a hierarquia nazista pôs por escrito, em atas, a decisão de exterminar os judeus na Europa. Coube a Eichmann (presente ao encontro) implementar o genocídio. Ele foi o arquiteto da solução final”, atesta Widder, que é o representante do CSW para América Latina. A instituição faz o monitoramento do antissemitismo nos países da região e se alinha às organizações de direitos humanos.
Em um debate na TV argentina (28/10/2012) com a participação da autora de Los Expedientes Eichmann, Widder destacou a importância da ação do Mossad, a despeito das consequências que naturalmente poderiam ocorrer no âmbito diplomático (como de fato aconteceu, com o governo argentino protestando em foros internacionais). “Supor que somente a identificação e localização de Eichmann conduziriam automaticamente a um julgamento não seria crível naquele momento”, avalia. “A captura e o feito de levá-lo a julgamento em Jerusalém constituíram um marco na história dos direitos humanos. Os processos que vieram a seguir, vinculados a violações contra pessoas e grupos tiveram como ponto de referência esse julgamento.”
Widder também elogiou a linha de ação adotada pelos agentes do Mossad. “Assim como o capturaram e o transportaram para Israel, poderiam tê-lo assassinado. Não advogo essa opção, mas isso seria possível. De todos os modos, decidiu-se por fazer um julgamento público. Aí está um valor que se sobrepõe a qualquer vingança”, observou. Opinião compartilhada por Gaby Webber. “Foi a primeira vez que o holocausto foi trazido à discussão pública em Israel”, confirmou a jornalista alemã. “E para as vítimas foi importante que um membro do Estado nazista houvesse sido preso e julgado. Para a Europa foi igualmente importante porque nos anos 1950 e 1960 ninguém queria lembrar Hitler, situação que mudou com a captura de Eichmann”, lembrou.
Iniciado em 11 de abril de 1961, o julgamento de Eichmann consumiu oito meses durante os quais foram apresentados os depoimentos de mais de cem testemunhas de acusação, duas mil provas e 3.500 páginas de registros da polícia israelense. Pela primeira vez a shoah foi mostrada ao mundo em toda a sua brutalidade e horror. “Às vezes, um dos principais objetivos de um processo é realmente ensinar um país sobre o seu passado e promover a introspecção pública”, escreve Mark Freeman, um advogado canadense e consultor internacional em questões de direitos humanos, autor da obra Truth Commissions and Procedural Fairness (Comissões da Verdade e justiça processual), publicada em 2006. Também a especialista em direitos humanos e professora de Direito da Faculdade de Tel Aviv, a israelense Leora Bilsky, considera o julgamento em Jerusalém um legado para Israel e a humanidade. “O conhecimento abstrato sobre a shoah se tornou real através das vozes autênticas dos sobreviventes. A história se transformou em memória coletiva.”
Execução reacende antissemitismo
Em 15 de dezembro de 1961, Eichmann foi considerado culpado e condenado à morte. Executado por enforcamento, em 31 de maio de 1962, seu corpo foi cremado e as cinzas espalhadas no mar, além das águas territoriais do Estado de Israel. Na Argentina, a morte de Eichmann foi seguida por mais de trinta ataques a alvos judaicos, como sinagogas e escolas. Um acampamento de estudantes foi invadido por vândalos que surraram os jovens. Muros de propriedades judaicas foram pichados com suásticas e as ameaças se tornaram rotineiras. Grupos neonazistas empunhavam cartazes com os dizeres: “Queremos Eichmann de volta”.
Um dos mais brutais atentados ocorreu contra uma jovem de origem judaica de 19 anos, Graciela Narcisa Sirota, estudante da Faculdade de Ciências da Universidade de Buenos Aires. Ela foi raptada, em 21 de junho de 1962, em um ponto de ônibus por três homens e torturada em um local desconhecido. A jovem teve o seio direito deformado pelos criminosos que o marcaram com uma suástica. Os bandidos também queimaram várias partes de seu corpo com pontas acesas de cigarros, deixando-a jogada na rua, desacordada, longe do centro da cidade.
Pouco tempo depois desse terrível episódio, outro caso envolvendo uma jovem de família judaica assustou os judeus argentinos. A jovem Mirta Penjerek, de 16 anos, desaparecida havia mais de um mês, foi encontrada sem vida no início de julho em um terreno baldio nos arredores de Buenos Aires, com o corpo em progressivo estado de deterioração. Ela foi vista pela última vez ao sair da aula de inglês, a algumas quadras de sua residência. A polícia, acionada pela família, seguiu várias pistas, mas não foi conclusiva quanto aos possíveis criminosos, permanecendo o crime impune.
Mais de três décadas após esses deploráveis acontecimentos, acrescidos, infortunadamente, por dois sangrentos atentados terroristas contra à embaixada de Israel (1992) e o centro judaico Amia (1994), causando mais de uma centena de mortos e 550 feridos – o presidente da Argentina, Fernando de La Rúa, em visita aos EUA, em 2000, foi até o Museu do Holocausto em Washington e depositou uma coroa de flores em homenagem às vítimas. Na capital americana, antes de seu encontro com o presidente Bill Clinton, La Rúa pediu desculpas públicas pelo abrigo que seu país deu aos nazistas. “Hoje, diante de todo o mundo, quero expressar meu mais sincero pesar e dizer que lamento que isso tenha acontecido”, falou o líder argentino que comandou o país de 1999 a 2001.
Contudo, ainda que cause indignação e se lastime a onda de antissemitismo que assolou a comunidade judaica da Argentina nos anos seguintes (o que ocasionou uma grande imigração para Israel), a captura e o julgamento de Eichmann provaram-se ações de um inegável valor histórico, social e transformador. Criou-se um novo parâmetro a respeito de crimes institucionais coletivos praticados por estados e governos totalitários. A presença de testemunhos (as vítimas) como provas acusatórias moldou uma nova consciência global para os chamados “crimes contra a humanidade”, tornando-os imprescritíveis de acordo com a resolução 2391 adotada pela Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), em 26 de novembro de 1968. Norma internacional defendida pelo procurador-geral da República do Brasil, Rodrigo Janot (Consultor Jurídico, em 19/10/2013).
Foi também a partir da visibilidade do julgamento de Eichmann em Jerusalém que aos poucos foram sendo criadas as Comissões da Verdade para investigar violações dos direitos humanos em uma série de países, principalmente na América Latina e na África, onde seus cidadãos foram vítimas de perseguições e torturas de agentes policiais e militares. E por fim, o histórico julgamento em Jerusalém rasgou o véu de silêncio que cobria a maior tragédia moderna sucedida em solo europeu e deu ânimo e amparo legal para que o incansável Simon Wiesenthal, de seu pequeno escritório em Viena, prosseguisse na busca aos carrascos nazistas, tarefa a qual se dedicou inteiramente até os 94 anos.
***
Sheila Sacks é jornalista