“Nirlando é um espelho do que todos nós gostaríamos de ser. E isso tem a ver com um jornalismo sonhado. Aquele que transforma.”
“Nirlando foi a quebra de paradigma que um jornalista, para ser brilhante, tem que ter um gênio difícil, ser prepotente, ou dono da verdade. Nirlando foi genialmente o oposto de tudo isso. Sem que nunca ninguém duvidasse de sua capacidade, cultura e competência.”
“O jornalismo deve muito ao Nirlando pelo texto impecável, pela ética, integridade, coragem, bom humor, lealdade, inquietude e pelo caráter.”
“Nirlando vai fazer falta no mundo.” “Baita jornalista, teve uma trajetória admirável.” “Era um sujeito extraordinário, sob todos os pontos de vista”. “É referência, mestre.” Tinha uma alma iluminada e uma mente brilhante.” “Fez a diferença.”
Essas são algumas frases e palavras pinçadas das homenagens, falas e inúmeros textos, mensagens e reportagens publicadas em jornais, revistas e nas redes sociais sobre a morte do meu irmão, o jornalista mineiro, Nirlando Beirão, aos 71 anos, em 30 de abril último. Foram manifestações de artistas, escritores, políticos, acadêmicos, leitores, amigos, parentes e, principalmente, de jornalistas que o conheceram ou trabalharam com ele durante os 53 anos de profissão.
Dos 18 anos, como repórter na sucursal da Última Hora, em Belo Horizonte, até o último dia de vida, como editor especial na Carta Capital, Nirlando Beirão teve uma ligação intensa com a notícia, a escrita, a apuração e a edição. Essa ligação lhe deu forças, bom humor e paciência surpreendente para conviver por cinco anos com a ELA (esclerose lateral amiotrófica), doença degenerativa, sem cura, que o fez perder, paulatinamente, toda a capacidade motora, da fala, da deglutição. Nos últimos anos conseguia movimentar apenas, e com esforço, o polegar, o indicador e o dedo médio da mão direita. Com esses movimentos escreveu e lançou, em maio do ano passado, o seu último livro, o elogiado romance “Meus começos e meu fim”. Nele reúne histórias do passado da família, relata a sua relação com o jornalismo e com a doença. Parar de escrever seria “a mais fatal das minhas perdas, pior do que a capacidade de amar”, revelou no livro.
A vida o poupou dessa perda. Escreveu e fechou a edição da seção QI da Carta Capital, no dia da sua morte. No último texto, na revista que circulou dois dias depois, deu mais um exemplo de sua capacidade de escrever ótimas matérias, com atualidade jornalística impressionante, usando seu conhecimento, a experiência e um computador. A partir da nomeação quase diária de militares para cargos no primeiro e segundo escalão do governo federal, Nirlando buscou na memória o Almanaque do Exército, uma publicação anual que traz o currículo de todos os oficiais. Com dados e fotos históricas relatou como essa publicação era amplamente consultada na época da ditadura na tentativa, meio vã, de desvendar quem eram aqueles militares que controlavam o país, que se alternavam no poder por decisão de um Colégio Eleitoral de fachada, depois de disputas internas entre facções e ideologias políticas mais repressivas ou não. Hoje, nem o Almanaque do Exército serve mais de fonte para ajudar a explicar a escolha de militares para o governo. Como Nirlando apurou e escreveu: “Na atual democracia entre aspas, o documento esconde-se em versão digital e exige licença especial, login e senha para ser acessado”.
Nas várias empresas jornalísticas onde atuou Nirlando Beirão foi repórter, editor, diretor de redação, correspondente internacional, colunista, editorialista, comentarista e até cronista social. Transitou por todas as editorias e cobria política, história, antropologia, literatura, teatro, cinema, música, futebol e esportes de todo tipo, gastronomia, enologia, arquitetura, direitos humanos, economia, comportamento, assuntos nacionais e internacionais. E era um excelente entrevistador, como destacou Mino Carta, amigo da vida inteira e chefe em diversas publicações.
Nirlando participou de projetos que marcaram o jornalismo nacional e é difícil pensar em um jornal ou revista onde não tenha trabalhado. Além da Carta Capital e Última Hora trabalhou nas revistas Veja; na Senhor; na Isto é, em São Paulo e em Nova York; na Playboy; na Status; na Caras; na Wish Report; na Bravo!; na República; na Brasileiros; na Forbes Brasil; no Jornal da Tarde; no Jornal da República; no O Jornal; na sucursal de O Globo, em Belo Horizonte; no Estado de São Paulo, na sucursal de Belo Horizonte e na sede do jornal, em São Paulo; assinou colunas no O Estado de Minas e em O Tempo; foi comentarista na RecordNews, blogueiro no R7. Em várias publicações trabalhou por mais de um período, no geral em suas melhores fases.
No Jornal da Tarde, projeto editorial inovador, trabalhou poucos anos depois do seu lançamento, quando se mudou pela primeira vez para São Paulo aos 19 anos. Estava lá em 1968, no dia em que foi promulgado o AI-5. Os jornalistas deixaram a redação em protesto simbólico, mas durante anos o jornal foi obrigado a conviver com os censores.
Aos 20 anos, Nirlando afastou-se da censura e do país, e foi para Paris, onde estudou e criou uma “agência de notícias” com jovens amigos. Estava no grupo de jornalistas, que lançou, comandado por Mino Carta, o Jornal da República, que teve vida curta, mas foi uma experiência histórica no jornalismo nacional. Com Mino Carta também participou do lançamento das revistas Senhor e Isto é. No Rio, onde morou alguns anos na década de 1970, foi um dos jovens mineiros que viveram a experiência do relançamento de O Jornal. Já no século XXI foi um dos diretores da revista de reportagens Brasileiros, inovadora publicação do amigo jornalista Hélio Campos Melo.
Quando os principais jornais do país resolveram reformular as colunas sociais, Nirlando foi o primeiro jornalista a assinar a Galeria, do jornal O Estado de São Paulo. A coluna ocupava uma página inteira do caderno cultural. Foi lá que Nirlando deu o furo que o então presidente Fernando Collor iria renunciar antes de concluído o processo de seu impeachment, que virou manchete do jornal. Apesar da imensa repercussão da página, Nirlando assinou a coluna por três anos. Gostou da experiência, do projeto de dar inúmeras notícias em uma coluna social, mas se cansou da pressão pelas notas, da necessidade de sua presença nas festas e eventos paulistanos, daquele convívio com a elite. O mesmo aconteceu quando foi seduzido pela proposta de lançar uma nova revista da editora Abril, a Caras. Tocou o projeto, formatou a revista, pensou no estilo das pautas e texto, mas assim que Caras se consolidou, aceitou nova proposta de trabalho e deixou a direção da revista, que permaneceu com as mesmas seções até hoje.
Nirlando não queria ficar restrito a algumas tribos. Queria transitar por todas elas, reportar a vida de todos brasileiros, influenciado por ter estudado ciências sociais/antropologia, disse em uma entrevista. E preferia tribos tradicionais e com menor visibilidade como a dos ianomami, exemplificou. Tinha como premissa na vida profissional e pessoal “nunca transigir em meus princípios”. Queria ser feliz, fazer o que gostava, por isso teve uma carreira diversificada, irrequieta, corajosa, repleta de experiências, de sucesso ou não. Não se preocupou com cargos, em ficar rico, com a fama a qualquer preço, prêmios e likes em redes sociais. Acreditava no valor da ”informação correta, decente, honesta”.
É um alento ver como a atuação profissional dele, com princípios e valores muitas vezes desconsiderados por alguns jornalistas, valeu a pena. O carinho e o respeito que Nirlando recebeu em vida, durante a doença e revelado em doses maciças depois de sua morte demonstram que ele deixou um imenso legado. É o que conta.
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Nereide Lacerda Beirão é jornalista. Foi Diretora de Jornalismo da EBC e da TV Globo Minas, além de professora. Ocupou também a diretoria do Centro de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais. É autora do livro “Serra”, publicado em 2012.