Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia/ Não há nada mais simples/ Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte/ Entre uma coisa e outra coisa todos os dias são meus./ Sou fácil de definir… (Fernando Pessoa, ‘Poemas Inconjuntos’, em Ficções do Interlúdio)
Para que servem biografias – apenas para revelar intimidades e fofocas? Elas seriam o ‘recheio’ de vivências mencionado por Pessoa entre as datas do início e fim de uma vida?
Biografia, além de gênero literário, é gênero jornalístico – reportagem vital, humana. Biografias podem ser publicadas em livro, jornal, revista e mostradas em rádio, cinema, televisão. Fazem parte do obituário mas nada têm a ver com elogios fúnebres. Não precisam ser portadoras de tristezas, podem ser mensageiras de grandes proezas. De qualquer forma, em qualquer tamanho ou formato, a biografia não pode escapar da sua obrigação liminar: mostrar uma pessoa através dos feitos e defeitos.
Para evitar perfis biográficos ou obituários escritos às pressas, todas as redações costumam manter em seus arquivos material biográfico sobre as principais figuras do noticiário (ou as mais idosas). Veículos mais preocupados com a qualidade dos seus textos encomendam obituários por antecipação, periodicamente revistos e atualizados. Nenhuma superstição: o de Winston Churchill ficou mais de duas décadas nas gavetas dos principais jornais ingleses.
Leonel Brizola gozava de excelente saúde, sempre ativo, explosivo, alerta. Ninguém poderia prever que estivesse com as artérias entupidas e que aquela infecção intestinal, aparentemente insignificante, poderia desdobrar-se perigosamente.
Não se pode prever coisa alguma – este é o princípio que rege a organização de uma redação. Mas é possível criar sistemas e normas capazes de enfrentar surpresas e conviver com o inesperado. Graças ao Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – organizado pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (5 volumes, também em versão eletrônica) – e um mínimo de discernimento, pode o jornalista brasileiro montar perfis biográficos de todos os grandes políticos vivos ou matérias de suporte sobre eventos dos últimos 50 anos. Mas é preciso consultá-lo.
Na noite de segunda-feira (21/6), quando chegou às redações a notícia da morte súbita de Brizola, aparentemente poucos se lembraram dele. Os diferentes materiais publicados pelos três jornalões nacionais no dia seguinte (22/6) é francamente insatisfatório em matéria de conteúdo, embora com generosos espaços. Fica evidente que faltou costura aos recortes digeridos apressadamente e paciência para ler o verbete inteiro do DHBB.
A edição seguinte (quarta, 23/6) foi um show-room de sacadas e achismos, tanto da parte de alguns colunistas como dos articulistas convocados para analisar a trajetória do falecido. O dado mais relevante (lembrado por diversos autores) foi o absoluto desprezo de Brizola pelos marqueteiros, mero recurso para fazer um contraste ao presidente Lula.
Última palavra
Além do rumoroso episódio da Proconsult, que envolveu o Grupo Globo, e das menções obrigatórias sobre a Cadeia da Legalidade, nada ou quase nada foi lembrado sobre o desempenho e experiências midiáticas de Brizola, o político que melhor soube tirar partido dos meios de comunicação na segunda metade do século passado (Carlos Lacerda não conta: além de político, era um grande jornalista).
Quando ainda prefeito de Porto Alegre (1955-1959), Brizola iniciou as conversas radiofônicas de madrugada, decisivas para a sua eleição para o governo do estado. São a origem da própria Cadeia da Legalidade, talvez a última grande experiência de mobilização nacional através do rádio neste país.
Inovou também na campanha para o governo investindo pesadamente numa série de anúncios nos jornais do Rio Grande do Sul para mostrar os feitos que a imprensa conservadora local não gostava de exibir. Talvez inspirado nesta experiência, ao perceber nos anos 1980 que perdia terreno na grande mídia – em parte pelo próprio desgaste –, resolveu comprar espaço em páginas nobres de alguns jornais para reproduzir as suas opiniões e posições. No princípio enormes (daí a alcunha de ‘tijolões’), posteriormente encolhidos, mostram um político tenaz e enérgico, disposto a resistir ao castigo de ostracismo que a mídia tentava impor-lhe.
Sem que isto signifique um endosso genérico às suas posições nos enfrentamentos com a mídia – muitos de baixo nível, como as diatribes xenófobas contra a Editora Abril – é imperioso reconhecer que Brizola foi o único político brasileiro com coragem para encarar e confrontar o poder da grande imprensa.
No caso da Proconsult, sem que isto implique num veredicto a seu favor ou contra, importante registrar que Brizola foi também o único político brasileiro que confrontou o mais poderoso grupo de comunicação do Brasil, a Rede Globo. O senador capixaba João Calmon, na sua campanha contra a parceria Globo/Time-Life, não estava ali como político: era o ex-empresário, herdeiro das ruínas do império de Assis Chateaubriand.
Leonel Brizola é um enorme conjunto de contradições. Coerentemente desenvolvida ao longo de meio século de ação política foi a sua postura de recusar que a última palavra fosse obrigatoriamente a dos donos das palavras – jornais ou jornalistas. Fez-se ouvir. Quando e como queria.