Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O escritor e a mídia

A entrevista de Umberto Eco (1) pela jornalista  Ilze Scamparini é uma aula de como escapar das armadilhas postas por uma entrevistadora preocupada mais em confirmar as teses neoliberais em voga como, por exemplo ao fazer uma pergunta sobre política na redação dos jornais ela introduz uma opinião pessoal tentando induzir o entrevistado a concordar consigo “Mas a política dentro da redação. Isso também pode ser uma coisa nefasta? A política, o jornalismo contaminado da política partidária.” Ao contrário, portanto, de uma pergunta neutra, menos invasiva, tipo “Qual sua opinião sobre …?” que passa ao entrevistado a avaliação se tal fato é, no seu entender, algo criticável ou não.  

A propósito, sobre a critica a política nas redações ele respondeu que nada tinha contra política nas redações e que pior era estas mesmas redações de jornais comprometidas com bancos, indústrias. Como exemplo positivo citou ainda o comprometimento político explícito de grandes grupos midiáticos americanos durante as eleições presidenciais. Comprometimento que, digo eu, evitam farsas comuns aqui no Brasil onde sob uma suposta neutralidade jornalística a grande mídia “vende melhor o seu peixe” ainda que comprometida até a medula com bancos, grandes grupos indústrias e rentistas. 

Só esta resposta bastava para a entrevistadora ”baixar a guarda” e direcionar a entrevista para um viés, digamos, mais literário com foco no lançamento do último livro dele “Número Zero”. No entanto,  como o livro tem relação direta com a política e com a mídia e seus meandros, ela teve que se reportar ao maior sucesso dele “O Nome da Rosa” e, em sequência, a um personagem do novo livro que, segundo ela, parecia remeter ao Sílvio Berlusconi ao que em resposta ele disse que o tal personagem tanto poderia remeter ao dito cujo como a outros grandes empresários da comunicação do mundo como, por exemplo, Rupert Murdoch. Neste momento, ficou claro que era melhor levar a conversa para paragens mais amenas senão o foco poderia voltar- se para questões locais, personagens locais e daí tudo se complicaria de vez. 

Outra questão interessante abordada pelo entrevistado diz respeito à edição que ele ilustrou com a hipótese de ocorrência de três crimes envolvendo o mesmo tipo de crime: um homem mata sua amante. Crime ocorrido em três capitais diferentes (Belo Horizonte, São Paulo e Salvador). Portanto, tudo nos conformes de um país imenso como o Brasil. Agora você junta estes três crimes em uma mesma notícia supondo, por exemplo, uma cor comum para todas as vítimas e tem- se uma configuração de proporções fantásticas quando, de fato, nada de fantástico ocorreu. Aliás, esta questão veio a reboque de sua abordagem sobre o que ele chama de jornalismo “máquina de lama”, um jornalismo preocupado apenas em manchetes sensacionalistas e chantagens.

Neste particular, se se aprofundar este tópico pode gerar um debate interessante sobre se a qualificação de jornalismo “máquina de lama” merece ser endereçada apenas a jornais verdadeiramente sensacionalistas dado que hoje a fronteira entre estes e a chamada grande imprensa no mundo pós-queda do muro de Berlim e fim do socialismo real é muito tênue. A indústria da difamação dos inimigos ideológicos na grande imprensa brasileira, que, segundos muitos, eu inclusive, atua como um partido político, virou a tônica onipresente a emoldurar as chamadas de capa e as principais reportagens na mídia impressa, falada e televisiva. 

Foi golpe em cima de golpe. Ela tentando conduzir a conversa para uma crítica neoliberal, de direita e ele a todas estas investidas respondendo e desconstruindo com elegância e sagacidade. 

Ao perguntar sobre a forte reação a sua dura frase “A internet deu voz aos imbecis” ele respondeu:  “É dar muita importância a uma coisa óbvia. É ou não verdade que no mundo existem muitos imbecis? Me parece que sim. Agora, podemos discutir se são a maioria ou a minoria. Mas existem muitos. No momento em que a internet permite que todos falem, permite que um grande número de imbecis fale. Então, é preciso também saber criticar aquilo que está na rede e pronto. Acho que quem protestou foram eles, os imbecis.” 

Ao ser questionado como ele, um estudioso de Tomás de Aquino e dos meios de comunicação como via o Papa Francisco como um comunicador. Eco respondeu não só que via com extrema simpatia como o alinhava aos jesuítas das missões dos seiscentos, um pouco revolucionários, paraguaios, que armaram os índios contra os espanhóis. Portanto, diferente dos jesuítas reacionários franceses dos oitocentos.

 Não estou com isso querendo dizer que a reportagem não foi boa. Seria leviano e injusto, pois, ela demonstrou conhecimento do entrevistado e sua obra e o conteúdo das perguntas era pertinente. A forma é que estava contaminada ideologicamente. Apenas quis demonstrar a força do pensamento único hegemônico na grande mídia que leva até bons repórteres a nele se enquadrarem e cometerem maniqueísmos ideológicos que são desconstruídos por entrevistados cultos e inteligentes como Umberto Eco. Fiquei com a impressão, posso estar enganado, de que ela se expôs ao ridículo ao ser desmascarada e a todo tempo contrariada em suas intenções. Intenções que não sei se fruto de convicção pessoal ou de desejo de agradar o patrão.

 O arremate final da entrevista não podia ser melhor:

Ilze Scamparini — Um papa um pouco laico, não?

Umberto Eco — Em suma…

Ilze Scamparini — Mais que os outros…

Umberto Eco — Ele não tem uma visão de talibã.”

(1) Umberto Eco morreu no dia 19 de fevereiro, aos 84 anos, em sua residência em Milão. Ele é o autor de obras como o Nome da Rosa, o Pêndulo de Foucault e Obra Aberta.

***

Jorge Alberto Benitz é consultor