O episódio é autêntico, aqui e ali algo manchado pela pátina dos anos e os escorregões da memória, e me foi contado pelo então embaixador do Brasil no México no final dos anos 1970, Lauro Escorel, já falecido. Na mesma época eu era correspondente da Veja para o México e América Central, absorvido, em seguidas viagens à Nicarágua, na cobertura da revolução sandinista. Mas, quando Escorel me avisou de que Fernando Sabino, vindo de Los Angeles, estaria hospedado na residência oficial durante alguns dias, para lá corri a conhecer pessoalmente o escritor mineiro que sempre lera e admirara.
Conversamos, eu todo ouvidos, tomamos um par de uísques dos bons, saímos de passeio, e só mais tarde soube do episódio.
Acompanhado da mulher, a carioca Lygia, Sabino certa noite jantou num bom restaurante da chamada ‘zona rosa’, então área boêmia, artística e cultural muito badalada e freqüentável, hoje afundada numa deterioração de dar pena e medo.
Ao voltar à residência oficial, Lygia, que administrava o dinheiro da viagem, fez as contas e constatou que faltava alguma coisa em torno de cem dólares. Ou seja, em vez de deixar dez dólares de gorgeta, ele, distraído, teria deixado, em pesos mexicanos, o equivalente a cem dólares.
Na manhã seguinte, na hora do café, os dois comentaram o ocorrido com o embaixador Escorel. Este, um paulistão sério e formal, fino intelectual (autor de um precioso estudo sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto) que pontuava suas frases com expressões antigas, indignou-se com a história e fulminou: ‘Vamos lá esclarecer isso já! Homessa!’
‘Uma injustiça’
Ao chegar no local, um pouco antes de que começara o serviço, por volta das duas da tarde, Sabino e o amigo embaixador logo sacaram um clima silencioso, de olhares e gestos cúmplices. ‘Onde está o gerente? Ainda não chegou? Vamos esperar, então.’ Ganharam pelo cansaço, pois numa determinada hora o tal gerente tinha mesmo que aparecer e assumir o comando do turno da tarde.
Feitas as apresentações de praxe, o embaixador Escorel relatou o fato ao gerente, que só balançava a cabeça negativamente. Por fim, convocou os garçons de serviço na noite anterior. Colocados em fila, como numa identificação policial, o gerente pediu a Sabino que indicasse o suposto autor da proeza. Sabino o apontou, e deu-se o seguinte diálogo, no mais puro mexicanês.
– Pepe, ¿usted atendió al señor anoche?
– Sí, señor.
– ¿Es cierto eso de lo que dice el señor, que dejó mucho más de la propina normal?
– No señor, el distinguido caballero dejó los diez por ciento de costumbre.
Com um sorriso triunfal, o gerente virou-.se para os dois brasileiros perplexos e tascou: ‘Ya vieron, señores, aquí no pasó nada. Y ahora, si nos permiten, tenemos que volver al trabajo’. E quando Sabino e Escorel deixavam o local, desconcertados e constrangidos com tanta cara-de-pau, ainda ouviram o coup de grace: ‘Ah, señores, se me iba olvidando decirles. Pepe fue elegido por nuestra asociación del ramo, el año pasado, como uno de los mejores y más honrados meseros de la Ciudad de México, motivo de gran orgullo para esta casa’.
Ao ouvir tudo isso, pensei que Sabino não deixaria passar essa oportunidade de ouro para relatar, numa bela crônica, o no mínimo curioso e custoso acontecido. Ele contudo nunca escreveu essa crônica. Anos depois, em São Paulo, quando lhe perguntei o porquê, respondeu: ‘Uai, seria uma injustiça com o México e os mexicanos. Afinal, esse tipo de coisa acontece em qualquer parte do mundo’.
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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México