Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O espírito do Gueto no campo de Röszke

A famosa imagem do menino judeu-polonês rendido pelos soldados nazistas faz parte de uma série de fotos e documentos do que foi chamado de “O Relatório Stroop” (The Stroop Report),Garoto do guetto organizado pelo comandante responsável pela repressão ao Levante do Gueto de Varsóvia, Jürgen Stroop, a mando do oficial do alto escalão do “Esquadrão de Proteção”, a Schutzstaffel (SS), Friedrich-Wilhelm Krüger.

A intenção de Krüger era oferecer o relatório como um souvenir, um presentinho de guerra para Heinrich Himmler, Reichfuhrer-SS (patente mais alta da SS) e um dos principais membros do Partido Nazista. Himmler havia nomeado Krüger, em outubro de 1939, para ser Superior da SS e líder da Polícia (Höherer SS- und Polizeiführer) na parte da Polônia ocupada pela Alemanha, chamada de Governo Geral. Homem poderoso, Krüger teve a incumbência de organizar o trabalho da polícia e da SS na retirada dos judeus do Gueto de Varsóvia.

Para ilustrar o pequeno regalo, que antes de ser “O Relatório Stroop” levava o título “O Gueto de Varsóvia não existe mais”, Jürgen Stroop, além das 75 páginas com anotações, resumos das operações e comunicados, selecionou mais de 50 fotos tiradas no front. A maioria das imagens que compõe o álbum saiu dos cliques do oficial da SS, Franz Konrad, o “Rei do Gueto”.

Nascido em Viena, na Áustria, em 1906, Konrad estava desempregado e tinha acabado de sair da prisão por roubar dinheiro do dono da firma em que trabalhava como escriturário, quando, ajudado pelo advogado que o tirou da cadeia, entrou para a SS austríaca e filiou-se ao partido nazista em 1933.

Quatro meses depois da ocupação alemã na Polônia, em janeiro de 1940, Konrad, agora um líder paramilitar do partido nazista, foi enviado à Varsóvia para estabelecer e acomodar as tropas alemãs e com a missão de apreender bens no Gueto de Varsóvia. Em português claro, ele estava lá para roubar propriedades e tudo o que tivesse valor das casas dos judeus. Para completar a execrável tarefa mandaram um polonês traidor, que trabalhava como tradutor para os alemães, para ajudá-lo. Ele sabia exatamente aonde viviam os judeus ricos de Varsóvia.

Corrupto, Konrad escapava dos deveres para se divertir e negociar no mercado negro. Ele só não foi preso pela Gestapo porque agia em parceria com oficiais superiores, queridinhos do Reichfuhrer-SS Himmler, que interveio em algumas investigações. Sem punição, Konrad foi convocado para participar da grande invasão à União Soviética, a “Operação Barbarossa”, em junho de 1941. Passado um ano, para sua alegria, saiu do campo de batalha e foi novamente colocado na “administração” do Gueto de Varsóvia.

No retorno à arrasada cidade polonesa, o oficial nazista estava mais “solto” e com a mão ainda mais leve. Era seu trabalho, agora e mais do que nunca, confiscar tudo o que visse pela frente. Tinha-se iniciado o extermínio dos judeus de Varsóvia comandado pelo oficial Jürgen Stroop.

Antes de virar um dos fotógrafos do “Relatório Stroop”, Franz Konrad ficou milionário com os roubos. E a violência e crueldade com que agia lhe renderam o apelido de “O Rei do Gueto de Varsóvia”. Ele estava lá documentando tudo quando, durante a Páscoa de 1943, cerca de três mil soldados alemães armados até os dentes acabaram com o Gueto. Os sobreviventes eram levados de trem para os campos de concentração. Como não havia espaço para tanta gente nos trens, muitos judeus foram executados ali mesmo, sob os olhos e a lente de Franz Konrad.Petra Laszlo 04

Esse episódio lembra o revoltante caso da cinegrafista húngara Petra Laszlo, da rede de televisão privada N1TV, que em atitude covarde chutou e derrubou refugiados, entre eles uma menina e um pai que carregava seu filho no colo, no campo de Röszke, fronteira da Hungria com a Sérvia. Ela estava ali para registrar a desenfreada viagem em direção ao centro da Europa. Porém, o que se suspeita é que repórter cinematográfica siga à risca a linha conservadora do canal em que trabalhava, que apoia o partido de extrema-direita “Jobbik”, do atual primeiro-ministro Victor Orbán.

O Governo húngaro é contra a entrada dos refugiados no país, os veem como uma ameaça “às raízes cristãs do Velho Continente”, e o líder do “Jobbik”, Gábor Vona, é conhecido pelas visões fascistas e antissemitas, que reforça e amplia a cada discurso. Apesar de ter sido demitida, após comoção mundial causada pelas vergonhosas imagens das agressões, chega-se a conclusão que Petra Laszlo documentava ali todo o sofrimento dos refugiados para o prazer dos seus líderes, tal qual fizeram os oficiais nazistas ao registrarem a aniquilação dos judeus no Gueto de Varsóvia.

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Rodrigo Zelmanowicz é jornalista