Os leitores que conheciam Barbara Heliodora pelas críticas publicadas nos jornais (de 1990 a 2014, no GLOBO) não podiam imaginar como ela se sentia por falar mal de um espetáculo. Nem como sofria por ser obrigada pelos médicos, em suas fases de saúde mais delicada, a ficar de repouso, em casa, enquanto a cena teatral, lá fora, seguia seu curso. Barbara amava o teatro. E, porque o amava, não admitia ver produções ruins — “A crítica condescendente é uma má crítica”, costumava dizer. Do mesmo modo, vibrava quando assistia a boas montagens, ainda que essas, em determinados períodos, fossem tão escassas, em sua opinião, que quase a faziam desistir do ofício.
Havia duas coisas imperdoáveis para ela: a falta de dramaturgia, que detectava principalmente no que identificava como uma “moda” das adaptações de romances para o palco; e encenadores que montavam clássicos sem que demonstrassem tê-los entendido. Nesse último caso, eram emblemáticas suas críticas a espetáculos de Shakespeare, autor de cuja obra ela era uma das maiores estudiosas no Brasil, e Molière.
Foi, aliás, uma montagem livremente inspirada em “As preciosas ridículas” que motivou uma de suas resenhas mais contundentes publicadas no Segundo Caderno, em junho de 2009:
“Sou e sempre fui contra a censura, porém creio que deveria existir uma lei que impedisse o uso indevido e abusivo de nomes de autores famosos e mortos, impossibilitados, portanto, de se defender contra incidentes infelizes e desastrados como, por exemplo, o lastimável espetáculo em cartaz no Sesc Copacabana intitulado ‘As ridículas de Molière’. Seus lastimáveis realizadores podem argumentar que, no caso, o nome de Molière é apenas parte do título, mas, como Molière escreveu ‘As preciosas ridículas’, o nome de um dos maiores autores de todo o teatro ocidental e o título de uma de suas obras são usados, na verdade, para atrair incautos.”
Ainda sobre o mesmo autor, escreveu, em 2013, em sua crítica para a peça “Apesar do amor”: “A jovem Lucilia de repente aparece, sem a saia, com uma espécie de calção, fazendo (muito mal) suposta dança erótica agarrada a um poste metálico, o que deve ter deixado Molière um tanto surpreendido”. E arrematava: “Os figurinos são tão díspares que parece terem nascido do ‘cada um traz o seu’, sendo todos péssimos”.
Não podiam passar incólumes encenações do bardo inglês, notadamente “Hamlet”. De uma produção de 2008, “Hamlet, príncipe da solidão”, ela notava o fato de o autor (também diretor, ator, cenógrafo e diretor musical do espetáculo) ter transformado “uma das mais significativas reflexões sobre a vida do homem de que se tem conhecimento na literatura universal” numa mera história de vingança, e dizia, diante do “imenso e injustificável engano”: “A direção é caótica, e só a informação de que o grupo costuma trabalhar com imagens de animais selvagens pode explicar os pulos, as contorções e as corridas das marcas” . De outra montagem, “Ou Hamuretsu”, em 2009, da Cia dos Atores Invisíveis, ela dizia: “Os mais difíceis espetáculos de se tentar analisar são aqueles que se apresentam, a um só tempo, como presunçosos e incompetentes”.
Críticas aguardadas com expectativa
Mas reconhecia também os acertos, quando os via. Elogiou “R & J de Shakespeare — Juventude interrompida”, uma adaptação de “Romeu e Julieta” encenada por João Fonseca em 2011. Ou “Os dois cavalheiros de Verona”, do Nós do Morro, em 2006, e ainda o Romeu e Julieta do Grupo Galpão, de Gabriel Vilela, que ela listou, em seu artigo de despedida da função de crítica do jornal, em janeiro de 2014, como um dos espetáculos que a marcaram “de modo inesquecível”, ao lado de “O mambembe” do Teatro dos Sete, os “Pequenos burgueses” de José Celso Martinez Correa, o “Marat/Sade” de Ademar Guerra, “O balcão” produzido por Ruth Escobar, o “Hoje é dia de rock” do Teatro Ipanema, “O beijo da Mulher Aranha”com Rubens Corrêa e José de Araújo, entre muitos outros.
Barbara era capaz de elogiar com o mesmo ímpeto que demolia. Sobre “O outro Van Gogh”, de 2012, escreveu:“É um espetáculo comovente, penetrante, bom de texto e de encenação, que confirma o Teatro Poeira como uma casa que vela pelo bom teatro”. Ou ainda “Nada como o prazer de ver mais uma vez comprovado, em cena, que o melhor teatro é feito de texto + ator, tratando da condição humana”, disse sobre “In on it”, peça de Daniel MacIvor, encenada em 2009.
As críticas de Barbara, para o bem e para o mal, eram aguardadas com expectativa pela classe artística e pelo público carioca, mas uma parte de suas palavras nunca foi publicada (leia coluna à esquerda). Eram os textos que ela enviava no corpo dos e-mails dirigidos ao jornal, em que costumava dar um brevíssimo, e às vezes destruidor resumo do que seria lido pelos editores: “Coitado do Maquiavel; ele não merecia isso”, dizia num deles. “Meu pobre Shakespeare sofre mais um triste golpe nessa bobajada insana; eu lhe garanto que é bem pior do que eu escrevi, mas os erros e enganos são tantos e tais que o melhor é ficar assim, só pelas beiradas”, observava em outro. “Estou começando a encarar o suicídio como opção festiva, comparada com o que ando vendo. Espero que o Miguel (Falabella) me salve hoje à noite! Desesperada, Barbara”, manifestava-se em outro. Ou ainda : “É um horror de duas horas e quarenta. Qualquer crítico deveria estar autorizado a ir embora ao fim dos primeiros dez minutos (no máximo). Rezemos pela próxima semana!”
Por outro lado, chegava a recomendar aos editores os bons espetáculos: “Depois dos horrores da semana passada, que maravilha ver o Nanini em cena! Ele é realmente extraordinário”; “Esse espetáculo (‘Vermelho’) paga uma boa parte dos muitos horrores que eu vejo. Não perca! É maravilhoso!”, “Esse (‘Conselho de classe’) é ótimo; por favor não demore em publicar, para dar tempo ao público de ir ver!”. E, quando se entusiasmava por alguma produção de grupo jovem, ou de fora do Rio, defendia com garra a publicação da crítica, caso de “The Book of Mormon”, montagem de alunos da Unirio: “Eu não costumo fazer crítica de teatro amador, mas esse espetáculo é sensacional, e o nível de execução realmente muito bom. Por favor, trate com carinho!”, pediu ela em dezembro de 2013. Foi tratado.
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Nani Rubin, do Globo