Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fim do charme discreto da burguesia nacionalista

Os brasileiros que formaram sua consciência durante a IV República, entre 1946 e 1964, gravitaram em torno de duas entidades míticas: o inelutável proletariado e a indispensável burguesia nacional. As forças agrupadas em torno dos dois personagens variaram entre a conciliação e a reforma, como realidades políticas, e a revolução, como utopia quimérica. Como o proletariado era força de longo prazo, no dia-a-dia competia lidar com a burguesia (nacional ou nacionalista, conforme a ênfase).

Nos livros e manuais era relativamente simples identificá-la. Grande parte da esquerda, que produzia esses conceitos, raciocinava por esquemas, em geral importados. Propunha-se um país ideal independentemente do país que existia. A realidade não importava tanto quanto a sua racionalização. O burguês era um taumaturgo, uma figura seminal difusa no ar. Vê-lo em carne e osso era difícil. Mas se havia o burguês progressista, seu nome era o do paulista Fernando Gasparian.

Ele morreu no dia 6/10, mas seus apressados obituários não fizeram justiça ao que fez e ao que representou nas teorizações de conciliadores, reformistas e revolucionários. Gasparian ganhou bastante dinheiro e podia ter deixado de lado as idéias que desenvolveu, as mais primitivas discutidas com dois importantes amigos desde a juventude no interior de São Paulo, Fernandos como ele: Henrique Cardoso e Pedreira.

FHC, o mais bem-sucedido como intelectual, foi também o que mais alto chegou às escadarias do poder. Pedreira trocou a trincheira jornalística pelo governo, não resistindo ao canto de sereia de FHC, que lhe ofereceu um emprego de alto nível em Paris.

Gasparian foi o único que combinou esses dois elementos a outro, que faltou aos amigos: o de empresário. Chegou ao máximo, com sua América Fabril, uma indústria de tecidos, quando João Goulart foi presidente da República. Seguiu-o no declínio. Perseguido pelos novos donos do poder, passou um tempo dedicado a atividades acadêmicas na Inglaterra. Retornou ao Brasil convencido de realizar o projeto de criar um periódico independente, democrático e altivo, conforme modelos europeus inspirados em alguns dos melhores jornais de esquerda ou liberais do continente.

Espalhar idéias

Desse compromisso surgiu Opinião, em 1972, em pleno governo Médici, o mais violento do período militar. Opinião foi o mais bem- sucedido empreendimento da imprensa alternativa, embora prejudicado por alguns erros de concepção, que subestimaram o ânimo repressor do regime. A afiada tesoura da censura, que começou a agir no número 9 e se tornou devastadora a partir da 23ª edição, desfazia o empenho da redação. Mas as dissensões internas também prejudicaram o semanário.

Quando a equipe liderada por Raimundo Rodrigues Pereira se retirou, por não conseguir acertar-se com o dono, Fernando Gasparian chamou Argemiro Ferreira para ser o editor. Opinião perdeu muito em qualidade informativa, na capacidade de acompanhar os acontecimentos, mas ganhou densidade analítica. Tornou-se parecido às publicações européias nas quais Gasparian se inspirou. Infelizmente, porém, o Brasil não era a Europa e o jornal não resistiu à sabotagem do governo. Mas morreu, em 1977, depois de 231 edições, com a dignidade que faltou aos últimos dias do Pasquim, a publicação alternativa de maior sucesso.

Gasparian perdeu a batalha, mas não desistiu da guerra. Voltou ao front cultural através de outros periódicos, como Argumento, e se tornou editor de livros, comprando as editoras Saga e Paz e Terra e dando-lhes uma linha editorial de alto nível. Não visava apenas negócios: queria espalhar idéias, defender proposições, assumir uma posição pública, a da lendária burguesia nacionalista. Tentou até o fim. Merecia acompanhamento melhor à sua última morada.

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Editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)