Oriana Fallaci foi uma das maiores jornalistas no século 20. Poucos chegaram próximo dela num dos momentos mais decisivos do jornalismo: o das entrevistas. Todos os personagens que ouviu foram coagidos a recebê-la. Contra alguns ela partiu armada de um ânimo feroz, freqüentemente já antecipado em outras matérias. Mas como recusar a autêntica intimação de quem tinha autoridade para fazê-la? Mesmo desancado ou humilhado, o entrevistado se tornava conhecido. Oriana sabia fazer-se ouvir no mundo inteiro. E era um privilégio estar ao lado de uma mulher inteligente, enérgica e bonita. Poucos se atreveram a dizer-lhe não. Muitos pagaram caro pelo sim que deram.
Por tudo isso, foi um atestado da desatenção nacional o pálido obituário que a intimorata Oriana Fallaci mereceu da imprensa brasileira ao morrer, em 15 de setembro, em Florença, na Itália, aos 77 anos. Havia mais de uma década ela lutava contra um câncer de pulmão, que dizia ter contraído por aspirar fumaça da queima de poços de petróleo quando fazia a cobertura da primeira Guerra do Golfo. Verdade? Não se sabe. Controversas – para dizer o mínimo – foram algumas das suas reportagens.
Na cultura da imprensa italiana, a fronteira entre a absoluta verdade e alguma (ou muita) fantasia nunca foi precisa e Oriana, apesar de estar acima dessas circunstâncias, nunca foi completamente vacinada contra elas. Numa personalidade tão exaltada, apaixonada e voluntariosa, combinada com uma coragem rara, esse era um detalhe irrelevante, embora o sensacionalismo e os atentados à exatidão condicionassem a aceitação de vários de seus textos. Nem sempre se podia crer na sua fidelidade aos fatos.
Calor da hora
Suas entrevistas, porém, fornecem ao aprendiz algumas das melhores lições que ele pode ter de jornalismo – e ao leitor, momentos de puro deleite intelectual, diante de verdades ou ficções que ela produziu (estas, com menor competência). A lista dos interrogados (que a expressão correta é esta mesmo) de Intrevista con la storia, um dos seus 16 livros, publicado originalmente em 1974 (e, infelizmente, nunca traduzido para o português), é um compêndio de história: dentre outros, o general vietnamita Giap, a primeira-ministra israelense Golda Meir, o líder palestino Yassir Arafat, o primeiro-ministro alemão Willy Brandt, o xá Reza Pahlavi e o nosso arcebispo Hélder Câmara.
Mas a melhor das entrevistas (antológica) foi com Henry Kissinger, então secretário de Estado americano. As audaciosas perguntas de Oriana contrastam com o ambiente intimidador que um super-homem real podia criar no seu local de trabalho, a Casa Branca, onde recebeu a jornalista, em 1972.
Em alguns momentos o auxiliar número 1 de Richard Nixon, acuado no córner, é obrigado a ceder declarações comprometedoras, como a de que a guerra do Vietnam fora ‘inútil’. Depois, admitiria que essa foi ‘a mais desastrosa conversa que já tive com um profissional da imprensa’. Mas a apresentação da entrevista feita por Oriana é ainda mais arrasadora. Dessa, Kissinger nunca deve ter-se recuperado.
Oriana dizia que o mais apaixonante no jornalismo é poder interpretar e discutir os acontecimentos ‘no calor da hora’. Esse é um privilégio ‘extraordinário e terrível’. Numa época de jornalismo virtual e jornalistas sem chama, sua morte acarreta uma lacuna verdadeiramente irreparável. Daí, talvez, a indiferença de uma imprensa tão distante do ‘calor da hora’.
******
Editor do Jornal Pessoal, de Belém (PA)