Espera-se que os jornais tragam obituários competentes de Peter Drucker. Hoje (sábado, 12/11) a Folha de S.Paulo foi a única a noticiar sua morte, numa nota curta. O The New York Times deu um artigo mais alentado em que considera as visões de Drucker sobre grandes empresas e organizações sem fins lucrativos ‘a inovação que define o século 20’.
Drucker, ensina o dicionário de alemão, significa ‘impressor, tipógrafo, gráfico’. Ele não teve esse ofício, mas deu trabalho a muita gente na cadeia de edição, com mais 30 livros que tiveram dezenas de milhões de exemplares, sem contar suas contribuições para a imprensa.
Mas o que importa aqui é que Drucker, nascido em Viena em 1909 começou como jornalista na Alemanha, de onde saiu após a ascensão de Hitler. Em seu livro Reminiscências – de Viena ao Novo Mundo, publicado no Brasil em 1982, há várias passagens em que ele oferece reflexões sobre o jornalismo.
Para começar, escapa da vaidade, tão comum nessa profissão:
‘Não sei se as coisas teriam sido diferentes se a geração de liderança da Europa não houvesse sido trucidada (….) Só me dei conta desse fato alguns anos mais tarde, quando com vinte e poucos anos tornei-me editor sênior de um grande jornal – não porque fosse tão bom, mas porque toda uma geração antes de mim deixara de existir. Não havia pessoas de 30 anos quando eu tinha 20; estavam todos enterrados nos cemitérios de oficiais em Flandres e Verdun, na Rússia e em Izonzo. Os sobreviventes permaneceram aleijados para o resto da vida – fisicamente apenas se tivessem tido sorte, mas quase sempre espiritualmente também’.
O livro é imperdível.
Modelo de editor
Drucker, como se sabe, foi morar nos Estados Unidos. Num capítulo sobre Henry Luce [1898-1967] e a Time–Life–Fortune, menciona a recusa de um artigo seu sobre revistas e jornais americanos, que lhe deu muito trabalho, e explica a razão: os editores do jornal britânico para o qual escrevia ‘ainda se atinham à velha e honrosa norma de que os jornais não escrevem sobre si mesmos’.
Diz que é difícil ‘repórteres-pesquisadores’ fazerem ‘a distinção entre jornalismo de pesquisa [provavelmente no Brasil a tradução hoje seria ‘jornalismo investigativo’] e maledicência gratuita’.
Dá uma definição de editor que deixará babando de felicidade muito Gêngis Khan de pacotilha:
‘Todo editor de primeira linha de quem já ouvi falar lê, arruma e reescreve cada palavra que sai publicada‘. [Cita vários, entre eles Harold Ross na New Yorker e Walter Bagehot no The Economist, nos anos de 1870.] ‘Os bons editores não são ‘permissivos’; não permitem que seus colegas ‘se expressem’, mas obrigam todos a ‘expressar’ aquilo que é do jornal ou da revista. Um bom editor, para não falar num que seja grande, é um autocrata obsessivo, com uma vontade de ferro, um caprichoso que reescreve e reescreve, que corta, suprime, vergasta e oblitera até que cada frase saia exatamente do modo como ele acha que deve sair.‘
‘Jornalismo grupal’
E critica Henry Luce:
‘Porém, o ‘jornalismo grupal’ de Luce procurava tornar as notícias impessoais submetendo cada uma à homogeneização mecânica. E isso, pensava eu, era garantia de parcialidade e inexatidão. Uma invenção da qual Luce se ufanava era a ‘pesquisadora’ – naqueles tempos sempre uma mulher – cuja função é desencavar e conferir todos os fatos, mas que não redige a matéria. Isso significa que o redator – naqueles tempos quase sempre um homem – nunca desencava nem confere nada. Como resultado, o redator na realidade não compreende os fatos, e a pesquisadora não compreende a matéria, dando fatalmente origem a imprecisões grosseiras. Vi uma boa demonstração disso alguns anos depois, em 1950, quando a Time preparou uma reportagem de capa sobre mim e um livro meu, A Nova Sociedade. A reportagem nunca chegou a aparecer; foi suplantada pela eclosão da Guerra da Coréia. Mas quando fui ler a matéria, nosso cãozinho bigle manco, meio cego e senil aparecia como um ‘feroz pastor alemão’; e um velho piano de armário de segunda mão que tínhamos na sala de jantar passou a ser ‘um piano de cauda na sala de música dos Druckers’. A pesquisadora notara o cachorro e me perguntara sua raça. Disse-lhe que era um cão de caça; o redator interpretou ‘cão de caça’ na ficha da pesquisadora como ‘feroz pastor alemão’. O divórcio entre pesquisa e redação transmutou da mesma forma nosso piano e nossa sala de jantar. Isso é o que inevitavelmente acontece no ‘jornalismo grupal’‘. (Páginas 233/4)
O sonho socialista
Na mesma página 121 em que comenta sua ascensão a editor-sênior, Drucker dá um diagnóstico do socialismo que merece meditação aqui, agora:
‘Pois o socialismo realmente morreu com os canhões de agosto de 1914, quando as massas socialistas rejeitaram a solidariedade proletária e entusiasticamente abraçaram o nacionalismo e uma guerra fratricida. Não foi o fim do marxismo enquanto teologia; as teologias sobrevivem à fé. Nem foi o fim do socialismo como força política. Mas foi o fim do socialismo como sonho – para uma geração e talvez para sempre. (….) Desde 1914 apenas uma cabeça de primeira grandeza na Europa se preocupou com o socialismo: a do italiano Antonio Gramsci, que pôde manter sua inocência dos tempos de antes da guerra porque Mussolini o manteve encarcerado, protegendo-o do contato com a realidade. (….) Os partidos socialistas europeus foram bem votados no período entre as duas guerras. Mas votos foram tudo o que obtiveram – e estes não fazem a menor diferença. Pois haviam perdido a visão, a convicção, o compromisso, a fé e a credibilidade. Na triste farsa que foi a política européia nos vinte anos entre Versalhes e a Segunda Guerra, foi como se o socialismo houvesse desaparecido do cenário principal. (….) E o ressurgimento do ‘socialismo’ como credo após a Segunda Guerra não trouxe de volta o verdadeiro socialismo, mas sim uma tirania nacionalista e uma luta desbragada pelo poder oculta nos slogans e nas palavras de ordem de outrora’.
[Postado em 12/11/2005, às 14h03]