Na mesma semana em que perdemos a prosa de Fernando Sabino, quando o coração do super-homem fraquejou – não pelos efeitos da kriptonita, mas ao final de um processo que começou com um acidente banal –, um dos sertanistas mais experientes do Brasil, José Apoena Soares de Meirelles, foi morto por um garoto imbecil no centro de Porto Velho, em Rondônia.
Entender a morte de Apoena Meirelles como uma metáfora da violência no Brasil pode ser um recurso de inteligibilidade possível, mais que uma justaposição arbitrária de fatos.
Para começar, é de fundamental importância levar em conta que no Brasil ainda sobrevive essa figura quase mítica do sertanista, algo que não faz sentido na imensa maioria dos países em que se divide esse pequeno planeta, confinado num dos braços da galáxia e, gravitacionalmente atado ao Sol, voando em direção à constelação do Hércules num movimento que os astrônomos chamam de ápex solar.
O assassinato de Apoena Meirelles por um adolescente que estava sem dinheiro – e por essa razão pediu emprestada a arma de um amigo para obtê-lo à força – acena com mais violência à região de Espigão d’Oeste, a 500 km de Porto Velho, e onde, em abril, índios da etnia cinta-larga mataram 29 garimpeiros que trabalhavam ilegalmente em suas terras extraindo diamantes.
Meirelles, que contactou os cinta-larga, tinha a confiança de seus líderes e estava empenhado em encaminhar uma solução para os conflitos que tem todos os ingredientes para continuar ativo.
Medo de morrer
Apoena Meirelles ficou conhecido como o sertanista filho de Francisco Meirelles, de quem seguiu a profissão, e especialmente como presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) em curto período de tempo, entre 1985 e 86.
Um outro homem, pouco conhecido, o geólogo de origem húngara Nicolau Ladislau Ervin Haralyi, dividiu com Apoena, num canto de página dos jornais, nessa semana, o espaço dedicado à violência. Segundo o delegado seccional de Santos, e responsável pelo caso, João Jorge Guerra Cortez (Folha de S.Paulo, 13/10/04, pág. A6), Haralyi teria sido morto a mando do ex-governador e ex-senador do Mato Grosso, Julio Campos, atualmente conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. De acordo com o delegado, o caso que também implicou na morte do empresário Antônio Ribeiro Filho, em São Paulo, envolve uma propriedade rica em pedras e metal preciosos na divisa do Mato Grosso com Rondônia.
Haralyi é um dos pioneiros da radioastronomia no Brasil. Com um grupo que reúne hoje vários radioastrônomos profissionais, ele participou do time que construiu o primeiro radiotelescópio brasileiro, um equipamento montado com tela de galinheiro no Parque do Ibirapuera, e inaugurado no aniversário da cidade, em 1961.
No começo dos anos 1960, quando se podia caçar rãs no Ibirapuera, os burros que puxavam as carrocinhas da prefeitura pastavam no parque e foram eles que destruíram o radiotelescópio pioneiro – um equipamento de trânsito (antena fixa) para observar emissões do núcleo da Galáxia descobertas pelo jovem engenheiro americano Karl Guthe Jansky.
Isso para sugerir que a violência, estimulada pela ganância de pequenos ou grandes ganhos, não distingue ninguém, nem do lado das vítimas, nem da parte dos réus.
Apoena era conhecido e viveu sua vida de 55 anos, teoricamente, em meio aos riscos da floresta densa e imprevisível. Foi assassinado por um adolescente filho de um funcionário público federal e uma enfermeira que, depois dos disparos contra sua vítima, fugiu de bicicleta.
Haralyi, que os antigos companheiros descrevem como um ‘gênio’ em eletrônica, na versão do delegado de polícia foi eliminado por um ex-governador, ex-senador e membro do Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso.
Daí a razão de líderes indígenas como Almir Suruí, presidente da Coordenação da União dos Povos Indígenas de Rondônia (Cunpir), negar-se a dar os nomes que estão por trás da violência na região, por medo de ser morto.
Contexto ignorado
O que a violência crescente tem a ver com a mídia e o que pode explicar seu recrudescimento?
A mídia, no mínimo, trata pontualmente esses casos. Programas sensacionalistas, com certa pretensão justiceira, especialmente na televisão, não fazem outra coisa senão banalizar a brutalidade. Introduzi-la em cada casa, como o pão e o leite da manhã. E quando se critica essa situação, a resposta, do lado dos empresários de comunicação e de boa parte da comunidade jornalística apoiada em frases feitas, é que não se pode inibir a ‘liberdade de imprensa’.
Liberdade de oferecer lixo malcheiroso e deformador de valores, especialmente à população jovem, a pretexto de prestação de serviços?
Para um ponto de vista histórico da violência entre nós seria necessário recorrer a autores como Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Milton Santos e Joaquim Nabuco, para falar dos desastres da escravidão, e Darcy Ribeiro, para refletir o sofrimento dos povos indígenas. Mas pode-se recorrer mesmo ao testemunho insuspeito de Charles Darwin em relação à escravidão, registrado após sua curta passagem pelo Brasil em Viagens de um naturalista ao redor do mundo.
Nossa injustiça social, inoperância das leis e conseqüentemente violência cotidiana têm raízes no escravismo e o próprio escravismo, de alguma forma, reflete uma mentalidade violenta que articulou a Contra-Reforma e esteve por trás dos crimes da Inquisição na Península Ibérica. É um legado que atravessa séculos.
O que a mídia faz neste momento é ignorar todo um contexto rico de acontecimentos e produzir informações banalizadoras, inconsistentes, e por tudo isso incapazes de refletir o que é o Brasil – o Brasil profundo – para escapar dos confinamentos históricos que nos prenderam sempre ao litoral.
Últimas testestemunhas
As professoras de cursos básicos continuam repetindo a frase feita da unidade do idioma. Quantas línguas são faladas no Brasil? Experimente fazer esta pergunta a um conhecido e fatalmente terá como resposta: ‘Uma, o Português’. Poucos sabem que no Brasil são faladas 211 línguas, uma delas o Português. A dominante, é claro, mas não a única.
Ainda ficamos fascinados, como acontecia no Império, com tudo o que vem do exterior e nisso a imprensa, sobretudo, tem boa parte das responsabilidades. Vivemos o choque do que os historiadores portugueses anteciparam como o ‘choque da planetarização’. Convivemos com a tecnologia de ponta e uma mentalidade arcaica. Ou seja, o metrô é eficiente e rápido, mas a fila para compra do bilhete é longa e desesperadoramente lenta.
O cultivo dos ‘ricos e famosos’ – tipos discutíveis que a Folha de S.Paulo inaugurou a partir dos anos 1980, embalada pelo seu próprio complexo de Peter Pan (todos eram muito jovens e não iriam envelhecer) – deu sua contribuição à alienação em sentido mais amplo, diluída em reportagens moduladas (módulos 100, 200 e 300).
A imprensa está em crise de recriação em todo o mundo. No Brasil, está numa encruzilhada por razões históricas específicas, relacionadas e de alguma forma confundidas, com a estrutura de poder oligárquico. Essas são questões que exigiriam volumes e volumes de análises reunindo as mais diversas áreas das ciências sociais.
Quem preferir um relato cristalino de nossa sociedade, uma fala alegórica e por isso mesmo plena de significados, experimente ler o depoimento do ancião Xavante Sereburã, da aldeia de Pimentel Barbosa (onde nasceu Apoena Meirelles) no belíssimo livro de Rosa Gauditano, Raízes do Povo Xavante.
Sereburã, que chorou a morte de Apoena junto ao seu caixão, supera em muito a fala lírica de Touro Sentado, líder indígena que resumiu a dor de seu povo frente ao massacre feito pelos brancos na conquista do interior e do Oeste nos Estados Unidos.
No depoimento a Rosa Gauditano, em certo momento ele diz:
‘Sou velho e não quero ser diferente do que sou. Quero continuar como índio que sou. Não estou de acordo com tudo o que envolve os jovens, mas é bom que nossos filhos aprendam a língua dos brancos para dialogar quando houver conflito. Para não acontecer, como foi, com os antigos que, em vez de se comunicarem, se matavam. Só podemos nos organizar e defender se entendermos a estrutura do branco para não sermos enganados’.
Sereburã, uma das últimas testemunhas da retomada do contato entre a sociedade exterior e os xavantes acrescenta, quase em tom de uma oração:
‘Sei que vou levar essa vida para outro lugar. Mas quero continuar essa vida, aqui, como é hoje. A única coisa é que antes eu não fumava, não chupava bala, nem tomava café ou açúcar. Os brancos nos ensinaram a fazer isso e agora falam que não pode, que faz mal para a saúde. Mas é muito gostoso e nós vamos continuar fazendo’.