Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O valente editor e o desafio de Opinião

Devo a um amigo e colega exemplar, Raul Ryff, jornalista histórico que estivera preso por ter acreditado (como tantos brasileiros combativos, inclusive sua mulher Beatriz) na frustrada revolução da Aliança Nacional Libertadora (1935), a amizade de Fernando Gasparian, empresário, editor e também jornalista, além de combatente na defesa dos interesses nacionais, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos.

Gasparian morreu sábado (7/10) em São Paulo, aos 76 anos. Tinha 45 quando me convidou, por indicação de Ryff, para dirigir a redação de seu semanário Opinião, hoje quase uma lenda da resistência democrática à ditadura militar (1964-1985), um dos jornais mais censurados de nossa história. Aceitei o convite por estar convencido de que o então editor, Raimundo Pereira, preferia ver Opinião morrer a sobreviver sem ele.

Eram dias conturbados e a esquerda, para variar, estava dividida – em especial sobre a melhor forma de combater a ditadura. Gasparian, que sempre apostava na unidade das oposições, ficara otimista com o êxito do único partido oposicionista tolerado pelo regime, o MDB, na eleição de 1974, o ano da grande virada. Filiado ao partido, tinha ajudado pessoalmente candidatos do chamado “grupo autêntico”, em vários estados.

Causa que justifica uma vida

Era aquela a grande luta da sua vida. Empresário nacionalista, tivera experiência jornalística quando estudante, ao lado de dois Fernandos, amigos – o Pedreira, depois diretor do Estado de S.Paulo e embaixador na Unesco, e o Henrique Cardoso (FHC), sociólogo que se tornaria presidente da República. Próximo a João Goulart em 1964, Gasparian só não se tornou ministro da Indústria e Comércio por causa do golpe.

Ao invés disso, virou alvo da ditadura, incomodada com sua ação nacionalista à frente do Conselho Nacional de Economia. Outro amigo dele, o ex-deputado Rubens Paiva, seria golpeado de forma mais brutal. Paiva, que se correspondia regularmente com Gasparian, morreu nas mãos de torturadores da ditadura, no Rio de Janeiro.

Na Grã Bretanha e, depois, também nos EUA, Gasparian foi professor visitante em Oxford e na Universidade de Columbia. Ao mesmo tempo, mantinha contato com jornalistas interessados, como ele, em criar um jornal de oposição. Das conversas com Raymundo Pereira e outros, nasceu Opinião – nome dado pelo próprio dono, que rejeitou os sugeridos por Pereira (Assunto e Movimento).

Lançado em 1972, o semanário Opinião, do qual fui colaborador desde o número 2, superou todas as expectativas. Isso o levou a sofrer censura direta, implacável, do regime (inicialmente no Rio, depois em Brasília), além de apreensões, prisões de jornalistas e do próprio Gasparian, e atentado a bomba na redação. A trajetória do jornal, que ainda reclama estudo adequado, foi um catálogo de arbitrariedades.

“Vou lhe dar um tiro na cara”

O regime militar insistia em negar que houvesse censura prévia, o que era proibido formalmente pela Constituição em vigor. Gasparian resolveu obter a prova e recorrer ao Tribunal Federal de Recursos, em 1973. Seu advogado, Adauto Lúcio Cardoso, levantou a preliminar de inconstitucionalidade e ganhou a causa. Mas no dia seguinte a decisão foi anulada pelo general-presidente Emílio Garrastazu Médici – e o país ficou sabendo que em 1971 um despacho secreto dele tinha instituído a censura prévia.

Como havia mais jornais sob censura, Gasparian tentara inutilmente convencer o diretor do Estado de S.Paulo, Ruy Mesquita, a somar-se à ação – recomendação do advogado, “para dar força”. Mas Mesquita achou a medida “perigosa”. Explicou ter informações de que o governo seguinte (já era certo que o general Ernesto Geisel seria o sucessor de Médici) planejava levantar a censura do Estadão.

Na gráfica que imprimia o jornal um censor certa vez esbravejou e ameaçou o dono do Opinião. “Não tenho medo de cardeal, nem do Le Monde e nem de deputado. Se o senhor continuar desse jeito, eu vou lhe dar um tiro na cara”, disse. A prepotência não intimidava Gasparian, apesar de assustar tantos donos arrogantes da grande imprensa. E a resistência dele não ficava nisso. Estendia-se aos livros e outras publicações.

Pouco depois do golpe de 1964, Gasparian assumira a editora Saga. Mais tarde, comprou a Paz e Terra, de Ênio Silveira, e criou a Graal com o ex-deputado (cassado) Max da Costa Santos. E enquanto a contabilidade de suas editoras era virada pelo avesso por fiscais da Previdência e do Imposto de Renda, em busca de irregularidades, ele lançava Cadernos de Opinião, logo alvo de censura e enquadrado na Lei de Segurança Nacional.

“Verdadeiro repto ao regime”

Um consultor jurídico do Ministério da Justiça considerou os Cadernos, devido a um artigo de dom Helder Câmara (intitulado “O que faria Santo Tomás de Aquino diante de Karl Marx?”), “verdadeiro repto ao regime”. Gasparian ainda lançaria Argumento, revista de cultura extremamente cuidada, com colaboradores do mais alto nível. Mas a circulação teve de ser sustada no quarto número, devido à censura.

Em 2004, quando a Paz e Terra lançou meu livro O Império contra-ataca [ver “Como medrou o ovo da serpente”], nossa amizade já tinha quase 30 anos. Na casa acolhedora de Dalva e Fernando Gasparian, no Leblon, fiz amigos e conheci escritores, artistas e personalidades – Celso Furtado, Luciano Martins, Kenneth Maxwell, Elie Abel, Eric Hobsbawn, Fernando Pedreira, Fernando Henrique, Helio Fernandes, Flávio Rangel, Zuzu Angel – impossível citar todos.

Antes de aceitar o convite para trocar o Jornal do Brasil por Opinião, com um salário abaixo do que oferecia a grande imprensa, ouvi o conselho insólito de um colega: “Antes de aceitar, exija que esvazie aquela piscina”. Por que devia fazê-lo? Nunca se fez isso com os Marinho e Chateaubriand. Aceitei e valeu a pena. Graças à coragem e à dignidade de Gasparian, Opinião é também um capítulo relevante da minha vida.

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Jornalista, foi editor-chefe de Opinião de fevereiro de 1975 a julho de 1976