Uma seleção das citações de Millôr Fernandes resultou num livro do tamanho da Bíblia (mas do caos). Levou esse título, é claro. Cada frase dele, nos seus aforismos inigualáveis, tem o poder germinativo de toda uma filosofia. É o que gostaríamos de dizer, em poucas palavras – e em frases de surpreendente simplicidade e clareza. Dispor dessa criatividade está acima das possibilidades do normal dos humanos. É terreno dos gênios. Millôr era um gênio. Seria gênio em qualquer língua, em qualquer cultura, em qualquer país. Ainda bem que nasceu entre nós.
De suas tantas máximas (e mínimas), me apropriei da mais contundente definição sobre jornalismo, que é oposição: o resto é armazém de secos e molhados. Usei a frase pela primeira vez em 1971, numa coluna, “Quark”, que escrevia diariamente em A Província do Pará. Dias depois recebo um bilhete manuscrito dele em papel de linho, com envelope sofisticado. Agradecia pela citação. Ele não me lia, obviamente. Mas assinava os serviços do Lux Jornal, que fazia o melhor clipping existente antes da era dos computadores. Recebia tudo que saísse na imprensa nacional com o nome dele.
Fiquei impressionado por esse profissionalismo, que alguns confundiriam com narcisismo. Motivos não faltavam para Millôr se envaidecer do que era. Rodei muito pela literatura universal atrás de alguém que se equiparasse ao bardo do Méier, subúrbio carioca onde nasceu e de cujas raízes nunca se desligou, embora tenha se tornado o mais legítimo intelectual do litoral carioca. Cheguei – como vários outros – a George Bernard Shaw, um dos maiores mestres da língua inglesa.
Como Millôr, Shaw era um humorista sofisticado, erudito, profundo e ao mesmo tempo fácil de entender, apesar da massa compacta de conhecimento da qual aflorava uma flor vernacular singela. Era mais teatrólogo do que Millôr. Mas não desenhava e não era jornalista. Millôr era tudo isso de forma esplendorosa.
Para sempre
Não era um cavalheiro sem mácula e sem nódoa. Sua saída da revista O Cruzeiro, a de maior tiragem relativa de todos os tempos da imprensa brasileira, onde começou e na qual permaneceu por longo tempo, é controversa.
Sua decisão de acabar com o Pif-Paf, sua única publicação alternativa, criada logo depois do golpe militar de 1964, que só circulou oito vezes, resiste à versão oficial, por ele apresentada. Seu comportamento na crise do semanário O Pasquim não foi exatamente modelar.
Às críticas que pudesse motivar, no entanto, ele podia reagir sacando em sua defesa, do cinto de mil utilidades que envergava, como se fosse seu traje atlético: era um individualista radical, liberto do avaro isolamento pela solidariedade intelectual ao humano. Não estava preso a nada. Nada o limitava. Nem a moral e os bons costumes.
Jamais seria um herói, mas poucos criadores foram tão importantes para a cultura brasileira contemporânea quanto ele. Teve uma vida longa, de 88 anos, ativa o bastante para deixar várias bíblias aos que continuarem no percurso terrestre. Bíblias para todos os gostos – e desgostos.
Com a dimensão que só um tipo de intelectual alcança, ainda mais quando intelectuais desse tipo parecem seres antediluvianos: o filósofo. Afinal, é o que Millôr foi – e continuará a ser para sempre, tanto mais filosófico quanto mais o tempo passar. É a passagem para a eternidade que só se abre para raros humanos: os geniais; de verdade.
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Chico: o fim
Não sei dizer se minha classificação escapa às distorções do saudosismo, doença endêmica nas pessoas que já envelhecem, como eu, ou se resiste ao teste de consistência: minha impressão é de que a televisão dos meus dias de menino e adolescente era melhor do que a atual.
Era quase uma arte, apesar da frase cáustica de Stanislaw Ponte Preta sobre “a máquina de fazer doido”. Ressalte-se que a definição era para aquela TV enquadrada pelas regras do golpe militar de 1964, que elevou à quintessência da qualidade a submissão, o puxa-saquismo, a cocoroquice (de reacionário e conservador). Da TV anterior Stanislaw foi personagem, o que confirma o padrão elevado de então.
Anos opacos
Nesse reinado televisivo de programas de espetáculos como Black and White e debates futebolísticos inteligentes, Chico Anysio era um capítulo à parte. Passei da meninice à puberdade hipnotizado pela inventividade do humorista de tantos personagens, como nenhum outro, exceto os grandes autores de ficção da literatura mundial. Era um Tolstoi ao vivo, especializado em humor. Talvez maior do que todos os humoristas do seu tempo – e de antes até.
Mas não do porte de um Millôr. Chico engatou quando transpôs os limites do estúdio de televisão e do palco. Não era bom de escrita e nunca aceitou essa limitação. Não consegui completar a leitura de nenhum dos seus vários livros, de fôlego curto. Era um gênio oral, não verbal.
Mesmo um grande artista como ele pode perder a sincronia com o ritmo do tempo e ficar para trás. E ele ficou. Foi se defasando e acabou por ser uma pálida referência do que fora. Por vaidade e por outros motivos, teimou em desafiar a realidade. Seus últimos anos foram opacos, algo a apagar da sua antologia. Mas a morte o ressuscitou e ele voltou a ocupar o lugar que lhe cabe, no topo da galeria dos melhores.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]