Milton Viola Fernandes, um escritor sem estilo, como gostava de se rotular, morreu numa terça-feira, 27/3/2012. Ou melhor: Millôr Fernandes, desenhista, humorista, dramaturgo, escritor e tradutor brasileiro, premiado pela crítica, aclamado pelos leitores, deixou o Brasil menos divertido em 27/3/2012. Nos últimos 74 anos, Millôr passou em revista os acontecimentos políticos mais importantes do país, registrou mudanças de comportamento da sociedade e criou frases inesquecíveis, como: “Claro, sabemos muito bem que Você, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?” O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (3/4) pela TV Brasil homenageou um dos mestres do humor no Brasil.
Alberto Dines recebeu no estúdio três antigos companheiros de Millôr. No Rio de Janeiro, participaram o chargista Chico Caruso e o poeta, jornalista, dramaturgo e crítico de arte Ferreira Gullar. Diariamente, Chico publica uma charge na capa do jornal O Globo e produz versões animadas para o Jornal da Globo. Escritor premiado, Ferreira Gullar trabalhou na revista Manchete e no Jornal do Brasil. Foi colaborador do jornal Pasquim e atualmente escreve para a Folha de S.Paulo. Em São Paulo, o programa recebeu Rodolfo Neder, diretor do site Millôr Online. Advogado, cineasta e publicitário, Neder era amigo de Millôr há mais de 45 anos e conduziu as incursões do cartunista pelo universo da internet.
No editorial exibido antes do debate ao vivo, Dines destacou o caráter multifacetado do humorista: “Millôr Fernandes não foi apenas um frasista, nem apenas um cartunista, nem apenas satirista, crítico de costumes, autor teatral, tradutor, jornalista ou pensador. Millôr Fernandes foi tudo isso ao mesmo tempo, em alta velocidade e sempre de forma extremada”. Dines contou que o cartunista fora autodidata e que sabia encantar os leitores com “palavras precisas, inesperadas, que sua poderosa inteligência convertia em fachos de luz”. Dines ressaltou uma das principais marcas da personalidade de Millôr: a defesa intransigente da liberdade.
Um adolescente na Redação
O Observatório mostrou trechos de uma longa entrevista gravada por Dines no estúdio do desenhista, em setembro de 1998, quando Millôr revisitou os momentos mais importantes da sua carreira. O cartunista relembrou sua estreia em O Cruzeiro, revista semanal ilustrada dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, e avisou que precisaria de pelo menos 15 dias para contar os detalhes dessa experiência. Aos 14 anos, Millôr ingressou na revista que seria a publicação mais consagrada da América Latina, quando a Redação ainda não passava de uma pequena saleta: “Essa revista, com o passar do tempo, chegou a 750 mil exemplares. Depois, a revista passou para a rua do Livramento e lá eu fiquei por 25 anos. Ainda tinha aquele clima, Machado de Assis morou ali, tinha a energia do Rio Antigo”.
Dines perguntou a Millôr se houve alguma tentativa de censura da sua coluna “Pif-Paf” por parte da direção da revista. O desenhista explicou que não havia restrições ao seu trabalho porque as pessoas tinham medo dele, mas em uma ocasião, quando a publicação já estava consolidada, houve um atrito por conta da palavra “amante”.
A então diretora-geral da revista, Lili Whitaker, considerada conservadora, cortou a palavra sem consultar o cartunista, que naquela época era responsável por dez seções da revista. “Se tivesse me consultado, eu deixaria tranquilamente. Eu nunca fiz questão. E aí, eu me demiti”, contou Millôr. Procurado por um redator importante para se retratar, Millôr mandou um recado para os diretores de O Cruzeiro: “Eu disse ‘Olha, como você veio falar comigo, eu vou dar um recado: eu quero que você, eu quero que o fulano de tal, que é o gerente geral, eu quero que o dr. Leão Gondim, que é o diretor-geral, eu quero que a diretora-geral da empresa vão todos para a puta que os pariu’. ‘Você está dizendo isso porque sabe que eu não vou dizer.’ Eu disse: ‘Esse é o mal do intermediário. Talvez, se tivessem vindo falar comigo eu não falasse isso’”.
As muitas casas de Millôr
Millôr escreveu um bilhete nesses termos para a direção mas, ainda assim, não foi demitido. Só saiu da revista anos mais tarde, já na década de 1960, quando publicou um artigo – a pedido da própria revista – que contrariou a igreja católica. Respaldado por um documento escrito em que a direção encomendava o texto, Millôr acabou ganhando na Justiça uma reparação. Depois, o cartunista foi trabalhar na revista Veja, onde uma charge sua provocou a presença de um censor da Redação após a decretação do AI-5, em dezembro de 1968.
Com a ida para o Jornal do Brasil, Millôr passou a trabalhar com a agilidade da informação diária e teve oportunidade de levar para o papel assuntos que antes descartava porque considerava efêmeros para o formato de revistas semanais. Demitiu-se contra a vontade do proprietário do jornal, Manuel Francisco do Nascimento Brito, porque um editor modificou um texto sem a sua aprovação. Millôr relembrou também a “divertida” passagem pelo emblemático Pasquim, trincheira do humor contra o regime de exceção. Por conta de seus artigos questionadores, Millôr foi convocado a depor inúmeras vezes e chegou a ficar detido.
Gravada quando o diploma em Jornalismo ainda era obrigatório para o exercício da profissão, a conversa de Dines com Millôr também enfocou a visão do cartunista sobre a profissão: “Eu tenho muita pena de certas pessoas hoje, com um talento geral, amplo, até mesmo eclético, que já entram em uma Redação para realizar uma função na qual, paradoxalmente, se eles são medíocres, são afastados, mas se são brilhantes ficam nelas como ficaria um militar, mudando de posto dentro daquela linha. Em suma, você não vê mais uma pessoa como eu, que teve a oportunidade de exercitar todas as suas capacidades dentro do jornal, fazendo algumas coisas que eu jamais pensaria que teria talento para fazer”.
Novas formas de fazer graça
Na avaliação de Millôr, parte da culpa dessa estagnação seria da obrigatoriedade do diploma. O cartunista não era contra a faculdade de Jornalismo, mas avaliava que o mercado estava bitolado e excluía desnecessariamente bons profissionais de outras áreas. Para o cartunista, em comparação com meio século antes, as Redações estavam mais fracas do ponto de vista da escrita; no entanto, os jornalistas passaram a atuar de forma mais profissionalizada e honesta.
No debate ao vivo, Dines comentou que a imprensa se esmerou em homenagear Millôr Fernandes após a sua morte. Para Ferreira Gullar, a cobertura foi generosa e justa. “Ele certamente iria gostar e faria algumas piadas a respeito”, disse o poeta. E Chico Caruso completou: “Se ele tivesse visto, morria de novo para sair de novo”. Rodolfo Neder disse que era natural que Millôr, por seu estilo progressista, migrasse para a internet.
Precursor do uso das novas ferramentas, o desenhista aproveitou a rede para chegar aos mais jovens. Neder contou que o site do cartunista tem uma boa visitação e atinge pessoas de diferentes idades, que fazem questão de interagir pelo Twitter e pelo Facebook. O site está no ar há mais de uma década: “Ele sempre gostou de tecnologia, dessas coisas novas que apareciam, e de que ele pudesse de alguma maneira brincar e conhecer. Foi um casamento perfeito”. Após a morte do cartunista, a equipe decidiu continuar atualizando a homepage.
Humor contra a repressão
Colaborador do Pasquim, Ferreira Gullar relembrou um episódio em que as forças de repressão prenderam, ao mesmo tempo, quase todos os funcionários do jornal. Millôr foi poupado desta vez e logo entrou em ação: “O Millôr ligou para uma porção de gente, inclusive para mim, para os que colaboravam eventualmente, a fim de que escrevessem coisas para o jornal sair. E, claro que com todo mundo preso, o jornal saiu com a seguinte manchete: ‘O Pasquim, o único jornal inteiramente automático do Brasil’”. Chico Caruso comentou que, nesta época, para manter o jornal em circulação, Millôr chegou a imitar o estilo de alguns colaboradores para substituir o material que faltava para fechar as edições.
Para Gullar, Millôr reunia qualidades em proporção muito maior do que outros humoristas. A qualidade e o toque de gênio eram incomparáveis. Chico Caruso destacou que o lado carioca do desenhista iluminava a sua obra. Dines comentou que Millôr foi compreendido nacional e internacionalmente por conta da alma carioca, do Rio de Janeiro cosmopolita.
Chico Caruso sublinhou que o cartunista, órfão de pai quando completou um ano de idade e de mãe aos dez, era um individualista positivo: “Ele entrou embaixo da cama e falou: ‘Agora, nada pior pode me acontecer’. Ele foi morar na casa do tio com seis primos e começou a ser um individualista. Na casa do tio tinha seis bifes. No primeiro dia, ele era visita . No segundo, ele pega o maior”. Ferreira Gullar destacou que é curioso que uma pessoa que tenha vivido uma infância conturbada acabar se tornando um humorista.
“Ele era um excelente desenhista. O negócio não é desenhar igual. Existe uma porção de estilos, de maneiras, de desenhar e de fazer humor. O Millôr tem um traço muito especial, muito próprio e o colorido reintegra o espírito de graça que tem no desenho. O traço já é engraçado”, avaliou Ferreira Gullar. Para Gullar, Millôr não se encaixava em um rótulo de profissão apenas: “Humorista é o cara que vê o mundo rindo”.
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A íntegra do Observatório da Imprensa na TV em homenagem a Millôr (3/4/2012)