O jornalista e homem político Luiz Mario Gazzaneo formou-se na esteira da reinvenção do PCB operada depois de 1935, durante a ditadura varguista do Estado Novo e, a partir de 1939, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Alguns dos jovens responsáveis pela abertura de horizontes do partido comunista se tornariam depois adeptos do retrocesso à concepção de luta armada: Diógenes de Arruda Câmara e Maurício Grabois são dois nomes importantes desse grupo. Outros, como notoriamente Armenio Guedes, continuariam a pensar politicamente numa linha mais lúcida.
Luís Carlos Prestes estava preso desde 1936, sem contato com o grupo que reconstruía o PCB. Depois de 1941, quando a União Soviética foi atacada pelo exército hitlerista e se tornou potência aliada dos Estados Unidos e da Inglaterra, Prestes aderiu à linha de união nacional que era proposta fora da cadeia por seus companheiros, influenciados não apenas pelo PC soviético, mas também, e fortemente, pela pregação do comunista americano Earl Browder, que seria posto à margem com o início da Guerra Fria.
Bom Retiro
Gazzaneo pertenceu à influente organização comunista do Bom Retiro paulistano. Em 2007, ele contou ao Museu da Pessoa que a legalidade de fato do PCB depois de abril de 1945 fez com que o candidato a deputado federal pelo partido José Maria Crispim obtivesse o apoio de 5 mil dos 12 mil eleitores da área, o que contribuiu para que lhe dar a maior votação, na capital paulista, à Assembleia Constituinte (leia aqui).
Para a história do jornalismo brasileiro, importa saber que quando o PCB foi posto na ilegalidade, em maio de 1947, e os mandatos de seus parlamentares nas três esferas de poder foram cassados, em janeiro de 1948, a imprensa comunista não foi extinta. Seria uma importante escola de jornalismo até o golpe de 1964.
O PCB seguiu dividido entre luta armada e aceitação das regras da democracia. Essa cisão foi o berço de muitas dissidências, desde o surgimento do PCdoB, em 1962, até a formação da ALN de Carlos Marighella, em 1965. Está descrita no livro A esquerda positiva: as duas almas do partido comunista, 1920/1964 (publicado em 1997), de Gildo Marçal Brandão, falecido em 2010, e em outros trabalhos.
Novos Rumos
Gazzaneo foi redator do Notícias de Hoje, jornal do Partidão em São Paulo, e editor de Novos Rumos, semanário ostensivo do PCB, no período entre a emersão do partido, em 1956, com o apoio à candidatura de Juscelino Kubitschek e a saída de Prestes do esconderijo em que se metera em 1948, e o golpe. Pertenceu à redação da Folha da Semana, precursora da imprensa alternativa de oposição à ditadura, publicado no Rio de Janeiro em 1965 e 1966. Sua trajetória na grande imprensa está descrita no portal G1 (veja aqui).
Em 1967, o gramsciano Gazzaneo foi o principal apoiador da escolha de Armenio Guedes para a direção do PC no então estado da Guanabara. Esse comitê estadual seria um importante centro formulador de políticas para derrotar (e não “derrubar”) a ditadura. Em 1970, Armenio escreveu um documento que foi divisor de águas (a íntegra do documento e uma apresentação escrita pelo próprio Armenio podem ser lidas aqui).
A política que derrotou o regime
O documento previa três caminhos para a derrota do regime. Um deles, que foi seguido com êxito pela maior parte da oposição, especialmente depois da vitória eleitoral de 1974, era “através da desagregação interna do Poder, sob o impacto do movimento de massas e depois de crises sucessivas, forçando uma parte do governo a facilitar a abertura democrática.”
Armenio fora eleito em 1967, como em 1943, suplente do comitê central. Quando a repressão obrigou uma parte do comitê central do PCB a se exilar, Armenio Guedes e sua então mulher, Zuleika Alambert, que integrava a direção desde o início dos anos 1950, foram para o Chile. Depois do golpe que derrubou Allende, continuaram em Paris sua ação unitária.
Em 1975, com o desmantelamento da gráfica clandestina do PCB e com a prisão e assassinato do jornalista Orlando Bonfim (dado como “desaparecido”), integrante do comitê central encarregado de continuar a publicação do jornal Voz Operária, Armenio foi incumbido de editar em Paris o jornal, que seria impresso numa gráfica turinesa do Partido Comunista Italiano e enviado a militantes comunistas, jornalistas, políticos e formadores de opinião no Brasil.
Voz da Unidade
Com a anistia decretada em 1979, os dirigentes comunistas voltaram ao Brasil, onde começou a ser publicado o sucessor da Voz Operária, a Voz da Unidade. O redator-chefe era Gildo Marçal Brandão e havia uma sucursal carioca chefiada por Gazzaneo, com a colaboração de sua companheira Teresa Ottoni e de outros jornalistas e intelectuais comunistas, socialistas e democratas.
A proposta política da Voz da Unidade, liderada por Armenio Guedes, foi derrotada tanto pela corrente prestista como pelo grupo que reivindicava a sigla PCB chefiado por Giocondo Dias. Armenio e Gazzaneo deixaram o PCB em 1983. Gazzaneo se tornou em seguida militante e dirigente do PPS. Armenio é o presidente de honra da Fundação Astrojildo Pereira, criada pelo partido de Roberto Freire.
O mundo, visto do Brasil, ficou menor sem Gazzaneo, como já ficara com a retirada de cena, desde julho, de Antonio Carlos Peixoto, Aloisio Teixeira e Carlos Nelson Coutinho, e, em 2010, de Gildo Marçal Brandão. Todos, como Gazza, doces figuras humanas e brilhantes pensadores que cultivavam uma virtude tão importante quanto escassa, a honestidade intelectual.
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Dos textos abaixo, os dois primeiros, de Bruno Thys e Romildo Guerrante, foram escritos especialmente para o Observatório da Imprensa e os demais foram publicados no Facebook.
A paixão segundo Gazzaneo
Bruno Thys (*)
O Gazza era o cara. Da legião de seus filhos adotivos, sou um deles. Foi meu primeiro chefe e uma das minhas maiores inspirações. Tenho uma coleção de histórias suas, mas fico com uma, muito pessoal.
Iria assinar minha primeira matéria. Isso lá pelo início dos anos 80. Naquela época, no JB, era dificílimo assinar matéria. O Gazzaneo havia me dito ao ler o texto. “Vou assinar”. Fiquei todo feliz. No dia seguinte, vejo o jornal cedinho com indisfarçável orgulho, mas estranho o meu sobrenome “Thys”. Mais tarde, na redação, argumentei que meu sobrenome era Tyschler, que o meu pai usava Tys, mas sem o “h”. Gazzaneo, que conviveu com meu pai no Partido Comunista, disse assim:
? Meu querido. Você não vai querer me ensinar o seu nome, né? Conheço você há duas gerações ? disse, encerrando o assunto, bem ao seu estilo, sem chances a réplicas.
E assim virei Thys.
Devo ao Gazza muito mais do que o meu rebatizado. Devo, sobretudo, a convivência diária nos primeiros anos da minha vida profissional, que me permitiu conhecer e aprender um monte de coisas com a sua grandeza e doce carrancice. Devo a ele a descoberta sobre o sentido da paixão. Gazza era, acima de tudo, um homem movido pela paixão. Paixão pelo jornalismo, pela busca da verdade, pelos livros, pelo sentido ético da vida, pela luta por um mundo mais justo; paixão pelos seus companheiros, pelo Palmeiras, por sua família. Paixão pela vida.
Bandiera rossa
Romildo Guerrante (*)
Gazzaneo deve estar rindo disso tudo, comentou uma amiga comum quando a cantoria religiosa encheu a capela do Caju onde seu corpo recebia a última visita dos amigos. Ateu e coerente, Gazza travava combates de profunda paixão com quer que se oferecesse a discutir qualquer assunto, especialmente política. Divergir dele, ainda que por pirraça, era sempre uma boa oportunidade para vê-lo em transe com as ideias que defendeu a vida toda, até ser abatido por um enfarto tão forte quanto forte era sua argumentação empolgada. Quem visse de longe uma discussão assim, e não o conhecesse, pensaria na necessidade de apartar os contendores, que pareciam na iminência dos tapas. Mas que nada, era sempre assim.
O coração que o traiu foi generoso o tempo todo. Quase à hora da saída do corpo para o crematório, alguém sugeriu que a despedida fosse um canto coletivo do hino da Internacional Socialista, mas não rolou. Emendaram-se rezas cristãs, que a maioria sabe de cor e salteado. Rezas às quais ele nem era hostil, apenas ignorava, tão profundas eram suas convicções ateístas. Mas é possível que, para além da cantoria cá embaixo, vendo aquilo tudo em torno do seu caixão, lá em cima ele murmurasse o canto do PCI italiano, que sabia de cor e cantava com entusiasmo:
Avanti o popolo, alla riscossa/Bandiera rossa, bandiera rossa/Avanti o popolo, alla riscossa/Bandiera rossa trionferà.
O “Aldo Moro” de Luiz Gazzaneo
Fernando Molica (*)
Publicado no Informe do Dia em 13/10
Em 1981, um jornal resistia em colocar na primeira página a foto do corpo do sargento Guilherme do Rosário, morto na explosão da bomba do Riocentro: afinal, eles não publicavam imagens de “presuntos”. Luiz Mario Gazzaneo protestou e ganhou a parada. Atento à dimensão política do caso, gritou que aquele cadáver era como o de Aldo Moro, político italiano assassinado por terroristas. Gazza, que morreu ontem, foi um grande jornalista.
Três histórias
Publicadas no Facebook
A melhor figura
Foi o melhor chefe e a melhor figura que conheci em jornal. Devo muito a ele. Eu e muita gente. Era esporrento mas não humilhava ninguém. Pelo contrário, seus esporros eram divertidos e deixaram saudade. Não mandava ninguém fazer nada sem saber exatamente o que queria.
Fui seu colega e subordinado na Internacional e no Copy do Jornal do Brasil e, no tempo do Sarney, seu subeditor no jornal O País (antes Jornal do País), do Neiva Moreira, ali na Lapa. Ele era o editor-chefe de uma jovem e promissora equipe que incluía o editor Elias Fajardo, o redator João Baptista de Abreu, o diagramador Leo Malina e os jovens repórteres Chico Otavio e Domingos Trevisan, entre outros. Tinha muito orgulho deles e dos repórteres que ajudou a formar no tempo de chefe de reportagem do Jornal do Brasil, a turma que ele chamava de seu “jardim de infância”. E um puta orgulho de ter tido Elio Gaspari como seu foca na imprensa comunista, da qual só se afastou no tempo do Médici, em 1973. Deixou muitas histórias ótimas.
Uma vez ficou preocupado (e feliz) porque eu estava me metendo demais em política e não sossegou enquanto não passei a andar com o endereço do advogado Humberto Jansen no bolso (“é muito melhor do que esse advogado de vocês, seu porralouca de meeeerda!”).
Conheci muito da vida e da história política brasileira com ele. Que sorte foi ter conhecido e conviver com o Gazza, que, não satisfeito com tudo o que fez na imprensa diária, já estava quase aposentado quando foi chefiar a assessoria de imprensa do IBGE. Não deu outra: virou referência em assessoria. Gazza, querido, a essa altura você já sabe o que nos espera. E já imagino sua primeira reação (“Puta que o pariu! Aqui também tem uma Redação, Deus existe mas não se mete em nossa linha editorial!!!”), a primeira manchete (“O Céu não existe”) e o sutiã (“Em compensação, o Inferno era aí embaixo”). Beijo, meu amigo!
O editorial esquecido
Em 1954, com pouco menos de 30 anos de idade, ele era repórter de um jornal chamado Notícias de Hoje. Era um dos veículos do Partidão e tinha sede em São Paulo. Fazia oposição a Getúlio Vargas. Gazza não se conformava com isso e nunca tirou da cabeça a grande cagada da edição de 24 de agosto. A manchete seria algo quase na mesma linha “Mar de Lama” da imprensa udenista. Porém, o suicídio do presidente naquela madrugada mudou tudo. E o jornal ficou com um título forte: “O POVO CHORA A MORTE DE SEU PRESIDENTE”.
Mas houve um problema: alguém se esqueceu de mudar o editorial, que mantinha a linha anterior. Puto da vida, Gazzaneo saiu pelas ruas do Centro de São Paulo, onde o povo estava quebrando tudo que encontrava. Gazza viu a vitrina da Pan American Airlines, viu uma pedra de bom tamanho no meio da rua e não conversou. Estilhaçou a vitrina “imperialista”. Tudo para esquecer a porcaria do editorial que comparava Getúlio a Carlos Lacerda. O título era “Farinha do mesmo saco”…
Luz, câmera, Gazzaneo!!!
Outra história do Gazzaneo. Ele trabalhou algum tempo na Vera Cruz, uma produtora de filmes com sede em São Bernardo do Campo que tinha a ambição de criar uma Hollywood brasileira no ABC paulista. Estudante de Cinema, como sabia falar italiano (pai e mãe eram de Nápoles; nota: Teresa Ottoni precisa que eram de Aietta, perto de Nápoles), conseguiu emprego como assistente de direção ou de produção.
Uma lembrança dele, desse período, foi ter que aturar o piti de um daqueles diretores trazidos por Franco Zampari. O filme, com Cacilda Becker ou Tônia Carrero num dos papeis principais, ia muito bem, até que na cena do chuveiro (como não se podia ousar muito, a nudez era coisa rápida e tinha que ter todo um clima), o gênio italiano que dirigia a “película” teve um ataque de pelanca por causa do sabonete. E deu um esporro no assistente, exigindo que fosse um sabonete (Lever, Gessy, sei lá) verde!!! Gazzaneo saiu pelas ruas e, no ainda incipiente comércio de São Bernardo, não encontrou o produto. “Só achei a porra do sabonete verde em São Paulo!” E tudo sem o menor sentido. De volta ao estúdio, só então ficou claro para ele – e para o mala do diretor – que o filme era preto e branco.
Eterno chefe
Chico Otávio (*)
Publicado no Facebook
Mesmo trabalhando no Globo, e ele no IBGE, continuei tomando esporro do velho Gazza. E também continuei, com as dicas que ele me passava assim, brigando pelas manchetes do jornal. Grande mestre e figura humana.
(*) Jornalistas
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Avanti, companheiro Gazza!
Sergio Fleury (*)
Querido – começava ele sempre com essa palavra um diálogo sobre qualquer assunto, para elogiar, criticar ou dar bronca. Era um “querido” mal-humoradamente doce, mesmo que viesse seguido de cobrança. Na redação do JB era elétrico, quer na chefia de reportagem, no copy, na edição. Era um senhor jornalista, mente rápida, reações imediatas, soluções sempre as melhores. Sua grande diferença de idade para com todos os repórteres jotabenianos fazia dele um paizão, mais pela experiência do que cronologicamente.
Era de uma lucidez política invejável! Não estou falando ideologicamente, mas de sacar situações. Nos anos 1970-80, vendo que os repórteres mais “velhos” – eu, Heraldo Dias, Fritz Utzeri, Israel Tabak– faziam restrições ao seu “estilo mal-humorado de comandar”, deu uma bela tacada: convidou a mim e ao Heraldo para sermos subchefes da Geral, um verdadeiro “cala-boca”. E mais, nos deu toda a força, quase carta-branca! E deu certo: tocamos aquele barcão sob suas asas conquistando a redação!
Abaixo, uma relação de páginas que permitem conhecer melhor a trajetória de Gazzaneo.
Jornal do Brasilonline:
http://m.jb.com.br/pais/noticias/2012/10/12/morre-aos-83-anos-o-jornalista-luiz-mario-gazzaneo/
Matéria no RJ-TV:
Entrevista de Gazzaneo a Silvia Maia e Antônio Carlos Medeiros, em três partes (o tema é a passagem dele pelo IBGE; duração total de cerca de 30 minutos):
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=hvOPQY76YLE#!