Certas palavras não mais abandonam nosso cotidiano depois que nos tornamos conscientes de sua existência. Injustiça é uma delas e, independentemente do idioma em que for redigida ou verbalizada, seu significado não muda de acordo com os azares da sorte.
Ao contrário, a mera perspectiva de que será reparado algum mal feito a alguém, no passado ou no presente, pode mudar o rumo da vida de um indivíduo, de uma família e até de uma nação.
Este é o caso da recente decisão das autoridades espanholas de extraditar o ex-policial argentino Juan Carlos Fotea Dimieri, apontado como um dos responsáveis pelo seqüestro e assassinato do jornalista e escritor Rodolfo Walsh, no distante ano de 1977. Acusado por delitos de tortura e lesa-humanidade, Fotea Dimieri fazia parte das forças de segurança que, na clandestinidade, e a serviço da Junta Militar que afastou Isabel Perón do governo, banharam a Argentina em sangue e lágrimas após o golpe militar de 1976.
Isabel e López Rega, por sua conta e risco, abriram a caixa de Pandora, e o que ocorreu depois poucas vezes encontrou paralelo nas brujerías e nas cruéis engrenagens da repressão na América Latina.
O caso de Rodolfo Walsh entrou para a história do vilipêndio aos direitos humanos no continente, e merece ser lembrado porque a morte violenta de um repórter, ou de um escritor incomum como ele, arrasta consigo uma parte da vida e da memória de seus leitores e, em conseqüência, uma parcela da história do próprio país. Não pode e não deve cair no buraco do esquecimento dos regimes totalitários, processo tão bem descrito por Hannah Arendt ao revisar o nazismo e sua tentativa de esconder vestígios – pelo fogo, explosivos, lança-chamas e máquinas trituradoras de ossos.
O desafio do totalitarismo é fazer suas vítimas ‘desaparecerem no silencioso anonimato’, escreveu Arendt: ‘Pois a lição dessas histórias é simples e está ao alcance de todo mundo. Politicamente falando, a lição é que em condição de terror, a maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma que a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela ‘poderia acontecer’ na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos os lugares‘ (Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal).
Operación Masacre
Para a Justiça argentina, o drama em pauta começa com a interceptação de Rodolfo Walsh em uma rua de Buenos Aires, no dia 25 de março de 1977. O repórter, diziam, era ligado à facção dos Montoneros, grupo que radicalizou seus métodos de luta política e sindical a partir de uma trajetória nacionalista e peronista. O fato é que horas antes de ser seqüestrado, Walsh, já na clandestinidade, redigira uma carta aberta dirigida aos membros da Junta Militar, na qual denunciava as atrocidades cometidas pelo novo governo que, apoiado em um imenso aparato repressivo, transformara o país em uma república de segredos e terrores. Para Walsh, aquelas foram suas últimas linhas.
Poucos dias depois de seu desaparecimento, recebemos, por meios clandestinos, uma correspondência endereçada à redação do jornal Versus, em São Paulo. O envelope continha uma cópia do texto que levou o repórter Walsh à morte. Seu testamento político, como o chamamos na época, iniciava assim:
‘A censura da imprensa, a perseguição a intelectuais, a invasão de minha casa, o assassinato de amigos queridos e a perda de uma filha que morreu combatendo-os são alguns dos fatos que me obrigam a esta forma de expressão clandestina, depois de ter opinado livremente como escritor e jornalista durante trinta anos. O primeiro aniversário dessa Junta Militar motivou um balanço da ação do governo em documentos e discursos oficiais, onde o que os senhores chamam acertos são erros, o que reconhecem como erros são crimes e o que omitem são calamidades’. (‘A carta da morte’, Versus nº 11, junho de 1977)
E, a seguir, afirmava:
‘A 24 de março de 1976, os senhores derrubaram um governo do qual faziam parte, para cujo desprestígio contribuíram como executores de sua política repressiva e cujo fim estava marcado por eleições convocadas para nove meses mais tarde. Nessa perspectiva, o que os senhores liquidaram não foi o mandato transitório de Isabel Martínez, mas sim a possibilidade de um processo democrático, onde o povo remediaria males que os senhores continuaram e agravaram.’ [O texto em português ‘Carta aberta à Junta Militar’, de Rodolfo Walsh, integrará a antologia Versus – páginas da utopia, em preparação.]
Há trinta anos, na Argentina, as palavras podiam matar tanto quanto qualquer arma. Seqüestro, por exemplo, era sinônimo de desaparecimento e morte. Daí que a nota de 10 linhas sobre a captura de Walsh, impressa na página 17 da edição do jornal O Estado de S.Paulo de 29/3/1977, encheu de apreensão a todos nós que conhecíamos sua extraordinária contribuição ao jornalismo investigativo e à verdade, o que ele grafou para sempre em sua obra Operación Masacre.
O telegrama de uma agência internacional de notícias descrevia:
‘O escritor Rodolfo Walsh está desaparecido desde sexta-feira, segundo denunciaram ontem os seus parentes. Acredita-se que tenha sido seqüestrado por um comando de extrema-direita. Walsh desapareceu um dia depois de ter enviado aos comandos militares um balanço, de um ano, a respeito da situação dos direitos humanos em seu país.’
Ao lado do perigo
Admirador de Walsh, o repórter Marcos Faerman, editor-chefe de Versus, tablóide independente e ligado à cultura e à política latino-americana, escreveu emocionado:
‘Muitos mortos são anônimos, e seria impossível reconstruir suas histórias. Qualquer destes mortos – qualquer homem morto pela Injustiça, em qualquer parte do Planeta – mereceria a mais longa das biografias. Mereceria um Homero ou um Cervantes. Qualquer homem merece o melhor do destino. (…) O que eu queria dizer – confusamente, talvez – é que sendo impossível falar da vida dos mortos anônimos, vou falar de Rodolfo Walsh. E de sua paixão pela vida. Porque é só isto que explica a luta do repórter para `reconstruir os fatos´. Mesmo em cima das linhas do perigo’. (‘As palavras também matam’, Versus nº10, maio de 1977).
[O jornalista gaúcho Marcos Faerman nasceu em 1944 e morreu em São Paulo, em 1999. Foi fundador do jornal alternativo Versus, repórter especial do Jornal da Tarde e do Estado de S.Paulo. Defendia, intransigentemente, a prática do novo jornalismo no país, ao aproximar as técnicas de reportagem às do romance, abrindo-se ao exercício de um estilo autoral de texto jornalístico. Faerman preconizava o encantamento do leitor, o prazer do texto, sem o abandono da verdade e da fidelidade aos fatos.]
Rodolfo Walsh, nascido em 1927 na localidade de Choele-Choel, na província de Rio Negro, foi um dos pioneiros do gênero conhecido como new journalism na América Latina, no qual Marcos Faerman também se destacou. O novo jornalismo foi praticado por alguns dos mais renomados repórteres, como James Agee, Gay Talese, Norman Mailer, Truman Capote e outros tantos, que utilizaram o ferramental teórico do romance no relato de fatos verdadeiros.
Operación Masacre, prólogo de uma tragédia anunciada, mais parecia uma novela policial do que propriamente uma reportagem investigativa, quando começou a ser publicada em forma de notas seriadas em Mayoría, um pequeno diário argentino. Em 9 de junho de 1956, Perón já havia sido substituído, desde setembro de 1955, por um governo de fato. Contra este último, levantaram-se os generais Tanco e Valle. A revolta foi reprimida com a violência usual. Mas, antes mesmo de decretada a lei marcial, um grupo de cidadãos que estavam reunidos – alguns deles com opiniões favoráveis à revolta – foram levados por forças militares a uma zona de lixões do subúrbio de Buenos Aires, e fuzilados. Alguns poucos, porém, conseguiram escapar da morte. A reconstituição da história de cada um dos homens envolvidos nessa tragédia resultou em uma obra-prima da não-ficção, redigida palavra a palavra por Walsh, que terminou, ele próprio, também personagem e vítima da mesma máquina repressiva que denunciara 20 anos antes.
Agora a Justiça argentina, obtida a extradição do algoz Juan Carlos Fotea Dimieri, terá a chance de redimir um jornalista e escritor talentoso e inquieto, que mostrou com rara lucidez que o perigo, muito além das novelas policiais que tanto o seduziam, estava bem mais perto do que todos imaginavam.
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Além de Operación Masacre, que pode ser encontrada em espanhol em Ediciones de La Flor, Rodolfo Walsh publicou também outras obras. São elas: Diez cuentos policiales; Antología del cuento extraño; Variaciones en rojo; Cuento para tahúres y otros relatos policiales; Los ofícios terrestres; Um kilo de oro; La granada y la batalla (teatro); Quién mató a Rosendo?; e Caso Satanowsky.
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Jornalista, editor do Via Política