Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a primeira vítima é a verdade

Volto a ocupar-me do jornalista e escritor polonês Ryszard Kapuscinski (1932-2007), que fez da vida uma aventura perigosa na busca de notícias para suas reportagens, lidas, comentadas e aplaudidas no mundo. Conhecia perfeitamente o universo que separa o jornalismo da história – duas coisas diferentes –, mas nem por isso deixou de utilizar os recursos da informação dominados pelo grego Heródoto de Halicarnasso, cujos textos foram condensados no livro História há 2.500 anos.

Foi esta obra que serviu de orientação a Kapuscinski, que se iniciava no jornalismo em Varsóvia (capital da Polônia) sem prática alguma. Nas páginas daquele livro há o indispensável sobre procedimentos elementares àqueles que desejam experimentar o amplo universo da reportagem. Inacreditável como Heródoto veio a antecipar uma técnica que, ainda hoje, é útil para quem deseja se firmar nesse gênero, que teve a fase de ouro, no Brasil, nas décadas de 40 a 60. O grego, que muitos consideram o primeiro repórter da história do jornalismo, era esperto.

Sabia todos os truques sobre a arte de bem informar, como preparar-se para desenvolver os assuntos, lendo, estudando, conferindo mapas, perguntando, ouvindo os dois lados (da nobreza à patuléia), tirando dúvidas, promovendo palestras e extraindo dados; viajava sem parar, como meio de adquirir mais cultura e conhecimento. Evitava dar opinião. Que o leitor o fizesse. Eis a marca do grande repórter.

Mito e lendas

O polonês se rendeu ao grego com a seguinte declaração: ‘A leitura de Heródoto me levou, pouco a pouco, a encontrar nele a alma gêmea.’ Para indagar: ‘O que me instiga a viajar, a agir? O que faz com que me submeta aos perigos de uma viagem, com que corra o risco de novas expedições?’ E respondia: ‘O desejo de estar num lugar a qualquer custo, de vê-lo e, acima de tudo, de vivenciá-lo.’ Como a seguir os passos e inspirado nos bons exemplos de Heródoto, não fez outra coisa na vida… Viajar, viajar. Aonde chegava, tirava do bolso o livro História e o relia, como a cumprir um ritual que o motivasse a cumprir, corretamente, a missão. Vivenciou todas as guerras.

Impressionava-lhe a maneira do mestre mostrar a face do mundo através do destino dos indivíduos. Nas páginas de História, cujo objetivo era perpetuar os acontecimentos ligados à humanidade, estão sempre presentes homens concretos, grandiosos ou insignificantes, bondosos ou cruéis, triunfantes ou miseráveis. O mito mistura-se com a realidade, e as lendas, com os fatos.

‘Na guerra, não há vencedor’

Eram essas as peças construídas para desfilar num palco os fatos e os personagens do mundo antigo, os quais foram transportados para o livro – que continua influenciando as pessoas. Kapuscinski deixou-se seduzir com a proposta do grego, que se propunha a um objetivo extremamente ambicioso: perpetuar a história do mundo, até então nunca pensado ou tentado por alguém. Homero, ressalte-se, tratou da guerra de Tróia, mas sem a preocupação de ser universal, apesar do mérito do trabalho, que ainda hoje desperta interesse. Na opinião do polonês, em seu último livro, Minhas viagens com Heródoto – Entre a história e o jornalismo, o grego é o primeiro a realizar aquela idéia e, por isso, pode ser considerado ‘o primeiro ser global na história do mundo’.

Há razões para tanto. Heródoto ensina o que muitos jornalistas não aprenderam, isto é, dar credibilidade ao texto. Primeiro, citando a fonte de informação sem errar nomes; depois, observar, investigar, não dizer o que não sabe. O nosso ‘primeiro repórter’, experiente, preferia omitir a informação a colocá-la em dúvida.

Conhecia os homens para ter a certeza que, estes, muitas vezes se deixam influenciar pela lenda ou pelo ‘ouvir dizer’. O repórter de Varsóvia tinha o projeto de escrever um outro livro, abordando a política da América Latina. No entanto, refletindo sobre a guerra, considerou que esta ‘é a degradação do homem. (…) Cada guerra é uma derrota para todos. Não há vencedor’. Acreditava que numa guerra a primeira vítima é a verdade. Achou melhor dar uma parada, para pensar o mundo, com transformações rápidas. Lamentavelmente, morreu,em janeiro último deixando as seguintes obras: Ébano – minha vida África, O Imperador (sobre a queda do ditador etíope Hailé Selassié) e Imperium (sobre a extinta URSS).

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Professor universitário e jornalista