Tomei praticamente conhecimento do Observatório, no começo de 2002, com minha demissão da CBN. Os colegas já demitidos, e geralmente nós jornalistas experimentamos isso diversas vezes, conhecem todos aquela sensação de vazio, de queda num buraco fundo, e aquele gosto estranho como se fosse terra na boca. Por ter sido, agora com a idade melhorei muito, provocador, agressivo e talvez antipático, vivi diversas demissões, algumas modificando o rumo de minha existência.
Em fevereiro de 2002, logo depois de um boletim ao vivo, no qual falava das contas secretas do então candidato a governador Paulo Maluf, recebi um telefonema da diretora do Sistema Globo de Rádio, Mariza Tavares, me dizendo que com as despesas da próxima Copa do Mundo seria preciso cortar minha colaboração. Engoli em seco e, logo a seguir, enviei um e-mail para um grupo de ouvintes, dando a versão de uma economia da empresa, nessa minha demissão.
E foi aí que entrou o Observatório da Imprensa. Um colega da Paraíba, jornalista em João Pessoa, o Carlos aranha, me enviou um e-mail de solidariedade e publicou no OI a versão política de minha demissão. Era ano eleitoral e o fato de eu confirmar a existência de contas bancárias na Suíça do candidato, tinha sido fatal. O texto do Carlos Aranha está no arquivo do OI e me levou, depois de digerir a demissão, a propor ao Luiz Fernando Emediato, editor da Geração Editorial e meu ex-colega no Estadão, um livro contando toda história dos bancos receptadores das fortunas de políticos do terceiro mundo, subtraídas do dinheiro público. O livro teve muito sucesso e esgotou.
Não sei exatamente quando meus textos começaram a ser publicados no OI. Os editores iam buscar no Direto da Redação, uma equipe de escribas voluntários sem salário, formada pelo colega Eliakim Araújo, ex-TV Manchete, da qual eu fazia parte. Foi mais recentemente que, eu mesmo, comecei a propor meus textos, muitos publicados ao mesmo tempo no Direto da Redação, herdado do Eliakim.
Eliakim publicava opiniões diferenciadas, às vezes opostas, o que faço também no Direto, num espaço cedido pelo jornal Correio do Brasil, cujo diretor-fundador é também pelo debate de ideias.
Quando exilado em Paris, fiz um curso de pós graduação no Institut Français de Presse, no qual obtive um mestrado me habilitando a um curso de preparação de doutorado em Comunicação. E inscrevi na Universidade o tema para minha tese “A liberdade de imprensa nos países do terceiro mundo“. Com meu entusiasmo, não tinha percebido me propor uma missão impossível por ter tocado num tema verdadeiro vespeiro. A vida era difícil para mim naquela época, tinha nascido minha primeira filha do exílio e minha proposta acadêmica, que se revelava complicada em minhas primeiras pesquisas, acabou sendo adiada.
Mas o tema da liberdade de imprensa sempre me preocupou, mesmo porque tive minha curta fase de sindicalista, no Sindicato de Jornalistas de São Paulo, quando em janeiro de 1967, organizamos com outros companheiros o que seria o último grande encontro contra a ditadura — o Encontro com a Liberdade, no Teatro Paramount. Fui o secretário da mesa, formada com lideranças de esquerda de diversos Estados contra a ditadura, tendo como presidente, ao meu lado, Mario Martins. Muitos anos depois, em 2009, o companheiro Alípio Freire, do Brasil de Fato, militante e resistente, ainda padecendo da tortura, me levou aos arquivos de São Paulo, onde achei uma descrição detalhada do Encontro com a Liberdade e de minha participação.
Naquela época não havia a atual inflação em matéria de informação. Os jornais, rádios e tvs detinham a informação, não havia redes sociais. Os jornais estavam sob censura e o Estadão publicava poesias de Camões no lugar dos artigos censurados. E, então, como fica a liberdade nos países do terceiro mundo ou emergentes? Nos países onde vigora a chamada democracia existem jornais, rádios e televisões. Nos países de regime autoritário ou de partido único existem jornais, rádios e televisões. Era esse meu tema de doutorado, não é à-toa que não concluí!
Em busca de uma resposta
Em janeiro de 1967, eu poderia ter encontrado uma explicação para a dificuldade em desenvolver numa tese a questão da liberdade de imprensa num quadro restrito — o dos países do terceiro mundo. Isso exige um retorno aos primeiros anos da ditadura militar, nos quais um recente jornalista, formado em direito pela USP, tentava encontrar um equilíbrio para seus próprios conflitos.
As preocupações sociais decorrentes de uma família pobre, na qual o pai tinha sido simpatizante comunista, tinham se misturado ou se diluído em preocupações ditas espirituais ou religiosas numa militância juvenil dentro da Igreja Presbiteriana. Se entre os católicos a teologia da libertação fazia seu caminho, entre os presbiterianos jovens líderes discutiam a função social da igreja num clima nacional que viria a se chamar de Reformas de Base.
Pouco antes do Golpe de 1964, a direção nacional dos presbiterianos tinha sido entregue a um conservador, Boanerges Ribeiro, cujas primeiras medidas foram as de censura no jornal nacional destinado à mocidade, chegando aos jornais mimeografados dos jovens das igrejas locais. A adesão da Igreja Presbiteriana ao golpe militar, a instauração de IPMs dentro das igrejas e fechamento de seminários, considerados focos de esquerdismo, selaram meu rompimento.
Quando Castelo Branco, o primeiro ditador decidiu criar um lei de censura aos jornais, eu e meu colega Ivan de Barros Bella, do Estadão, conseguimos sensibilizar os companheiros do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, apesar da oposição do presidente da época, Adriano Campagnole, para se criar um grupo contra a censura.
Desse grupo surgiu o Encontro com a Liberdade, no Teatro Paramount, lotado. Foi talvez a última manifestação pública permitida pela ditadura, reunindo as lideranças de esquerda contra a censura. Como secretário da mesa, ao lado de Mário Martins, eu dirigia o encontro, quando alguém me entregou um telegrama. Vinha do diretor do Estadão, o velho Júlio de Mesquita Filho, dando sua solidariedade e do seu jornal ao Encontro com a Liberdade. O jornal havia apoiado o golpe militar, mas já tinha se colocado na oposição.
Após informar o presidente da mesa, Mário Martins, li o telegrama e fui surpreendido por uma imediata e grande vaia contra o Estadão e contra o velho Mesquita. De nada adiantaram palavras sobre a importância do telegrama e sobre uma união contra a censura. A possibilidade de uma Frente contra a censura foi ali mesmo abortada.
Três anos mais tarde, já exilado em Paris, participávamos de um seminário do Irfed, um instituto de estudos do desenvolvimento, quando chega a notícia do assassinato do capitão Lamarca. Ao que um dos participantes, sugere aos colegas — “temos de dizer que ele morreu lutando!”. Logo depois de ter chegado a Paris e comprado o Nouvel Observateur, revista de esquerda, comentando a invasão de Praga, um ano atrás, desfazem-se os argumentos tantas vezes ouvidos de que Dubcek era um traidor.
Em 1986, ligo o rádio de manhã e chega a notícia de que, na Suécia, detectaram uma nuvem radioativa sobre a Europa, vinda provavelmente da explosão numa central nuclear. Era Chernobyl. A imprensa soviética tinha ficado calada, mesmo se em Chernobyl era o caos.
Provavelmente, o maior atentado contra a liberdade de imprensa tenha sido o ataque à redação da revista satírica francesa Charlie Hebdo, por um jihadista em retorção à publicação de caricaturas do profeta Maomé. E, em decorrência, o maior ato de proclamação da liberdade de imprensa tenha sido a presença da maioria dos dirigentes europeus, desfilando em Paris em favor de Charlie Hebdo e condenando toda tentativa violenta de controle da imprensa.
Esse atentado revelou um outro fator responsável pelo controle da liberdade de imprensa — a religião. Apesar da avançada globalização econômica no planeta (dinheiro não tem pátria), o mundo continua dividido em religiões, algumas com dogmas que se chocam com os padrões de respeito aos direitos humanos. Todos os anos, no Conselho de Direitos Humanos, o grupo de países muçulmanos tenta fazer aprovar uma Resolução proibindo se ridicularizar as religiões e seus deuses, com o objetivo único de proteger o seu profeta, pois as outras religiões não são bem vindas em seus territórios.
Até hoje, os países ocidentais em nome da defesa da laicidade derrubam essa tentativa, porém com o atual crescente fervor dos credos fundamentalistas, é certa, dentro de alguns anos, a aprovação dessa Resolução, que irá proteger igualmente o Papa, assim como Maomé, Cristo, Buda e todas as manifestações religiosas.
Será o fim da liberdade de imprensa, a pretexto de um respeito devido aos nossos criadores. Porém, como até hoje não há prova evidente da existência desses deuses criadores será a vitória das forças reacionárias, pois o respeito ao Deus ou Profeta de cada religião será acompanhado do respeito aos dogmas e crenças delas decorrentes que se manifestam no comportamento de seus fiéis, muitas vezes contrários aos direitos humanos e à própria ciência.
Deixando-se de lado essa ameaça teocrática recente à liberdade de imprensa, visível mesmo no Brasil com a emergência dos evangélicos, resta a questão inicial de qual seria a situação da liberdade de imprensa nos países do terceiro mundo. Nenhuma, nos regimes totalitários ou de partido único de direita ou de esquerda. Relativa, nos países democráticos.
O acesso à liberdade de informação não é um capricho burguês mas um direito humano. Nesta área, conservo minha divergência com a esquerda não democrática. Num país de partido único, de direita, de esquerda ou religioso, a liberdade de imprensa desaparece totalmente. O Brasil viveu isso no Estado Novo de Vargas. A URSS, a China, Coreia do Norte, Cuba e os países muçulmanos teocráticos. A Espanha de Franco, Portugal de Salazar, a Alemanha nazista e os países por ela conquistados mantinham a imprensa sob controle.
Nessa época não havia redes sociais, novidade recente que mudou o equilíbrio nessa questão, pois dificultam o controle da informação, mas ao mesmo tempo podem ser invadidas pelas chamadas fake news ou notícias falsas. E essas fake news podem ser utilizadas internacionalmente por países como os EUA e a Rússia, ou mais recentemente pelo Irã. A Rússia tem mesmo uma agência, a Sputnik, especializada em teorias de complô, existe na França a rede Voltaire, de direita próxima da extrema-direta também especializada em teorias de complô. No Brasil, existem sites e blogs, ditos de esquerda, abastecidos por essas redes.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI. Editor do Direto da Redação.